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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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Transformar o Brasil a partir de uma cidade-mulher

‘Se falamos olhando nos olhos da população de uma cidade, estamos falando com a população brasileira’, escreve Márcia Lucena

Foto: iStock
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O pequeno contém tudo que contém o grande. O que está dentro é igual ao que está fora. É isso que concluímos ao apreciar a vida. Adoro fazer esse exercício! Isso me aproxima, me iguala, me traz a nítida sensação de pertencimento e me permite olhar para os desconhecidos, os comuns, como alguém muito próximo, sujeito ao amor.

Desde que iniciei o trabalho como prefeita de Conde, pequeno município situado no litoral sul da Paraíba, passei a olhar a cidade por esse prisma, como se fosse uma mulher. Uma mulher que precisa de sororidade, ajuda, atenção, cuidados. Que mesmo sofrida, acolhe, alimenta, se doa. Que carrega todas as outras em si.

Como gestora pública, junto com meus companheiros e companheiras, entendemos que esse olhar foi muito importante para pensar a cidade de forma mais democrática e participativa.

Vimos as áreas mais centrais e mais bem cuidadas, legalizadas, com serviços prestados à população, como uma moça “recatada e do lar” que muitas vezes esconde segredos para manter a todo custo a sua imagem, com ruas pavimentadas, mas sem saneamento, com um ou outro terreno baldio e escuro que guarda o perigo de forma casual. Havia uma certa vulnerabilidade no equilíbrio e na ordem aparentes.

Vimos as praias, lindas e desejadas, como mulheres livres, de cara para o vento, o tempo todo dançando, interagindo com muitas pessoas, sabendo lidar com as mudanças da vida com resiliência.

Olhamos para as áreas rurais com suas lavouras e seus milhões de pés de inhame e nos veio a imagem de mulheres simples, fortes, que não se perdem no que não é essencial, mas carregam consigo uma rigidez de hábitos, costumes, valores que as impedem de soltar os cabelos, às vezes ultrapassar os limites e buscar novas possibilidades.

As periferias, cheias de ruas esburacadas e esgoto à céu aberto, distantes de todos os serviços públicos, com casas penduradas em barreiras ou avizinhando grandes voçorocas, nos lembraram as mulheres moradoras de rua, resistentes, aquelas que teimam em viver, mesmo sem o olhar do poder público e com o desprezo das outras pessoas.

As áreas invadidas nos remeteram às mulheres violentadas, exploradas, mulheres trans, que ficam abrindo espaços internos para caber sempre mais, mesmo que não seja bom, mesmo que não seja seguro, mesmo que não seja saudável, pois a vida não lhes trouxe muitas escolhas.

As comunidades tradicionais, quilombos e aldeias indígenas nos lembraram as mulheres que escolhem dar a vida pelo serviço de resgatar a identidade coletiva, de ligar o que é essencial, unindo o passado e o presente para resistirem no futuro, as mulheres militantes, que carregam suas bandeiras de luta.

Os equipamentos e obras inconclusas nos trouxeram a imagem de mulheres que mutilam a própria vida em relações violentas ou indiferentes, sem amor, apenas por convenções. Aquelas para as quais a vida nada mais é que a rotina e o passar do tempo.

As ruas e estradas mal traçadas nos lembraram a vida corrida e imperfeita da maioria de nós, inacabada, fazendo trajetos por toda a cidade, andando de lá pra cá para dar conta de todos os desafios que estão em nossos colos. Ninguém explora tanto os espaços da cidade como as mulheres! A cidade somos nós!

A forma como a cidade de Conde se desenvolveu denuncia a violência e o desprezo praticado especialmente contra as mulheres (o Conde constava no Mapa da Violência/2014 como a quarta cidade, do seu porte, mais violenta contra as mulheres em todo Brasil). Foi fácil perceber o desdobramento disso na educação, na saúde, no apagamento identitário e cultural, na não participação cidadã em todo território.

Como servidores públicos, buscamos o olhar e o sentimento das mulheres para mergulhar no corpo da cidade. Demos vez e voz a essas mulheres dos quatro cantos de Conde e entendemos, com nossa prática, que mulheres atuantes geram comunidades mais saudáveis, alfabetizadas e menos violentas. As mulheres semeiam e colhem sem parar!

Quando pensamos nisso, pensamos no muito que fizemos e no muito que temos por fazer para que esse diálogo resulte em políticas públicas assertivas, inclusivas. Uma cidade onde mulheres possam circular sem medo, sem culpa e ocupar os espaços de luta e poder. Uma cidade sustentável , economicamente criativa, desenvolvida a partir dos arquétipos femininos, capazes de nutrir, de transformar.

Uma cidade do Brasil, por pequena que seja, contém o Brasil. O que vemos e vivemos dentro dela é o mesmo que vemos e vivemos fora dela. Se falamos olhando nos olhos da população de uma cidade, da nossa cidade, estamos falando com a população brasileira.

Em nossa experiência de gestores públicos, nos permitimos viajar por essa estrada, que passa por tantas cidades, com o olhar mantenedor e feminino, nos enchemos de esperança e urgência, pois nos conectamos com o poder real de transformar o Brasil a partir de uma cidade-mulher.

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