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Territórios de Vida e Morte: Re(existência) Negra nas Cidades

As redes de sociabilidade fomentadas por pessoas negras nos ensinam valiosas lições sobre a construção de formas de vida baseadas na solidariedade, na resistência e no cuidado

Territórios de Vida e Morte: Re(existência) Negra nas Cidades
Territórios de Vida e Morte: Re(existência) Negra nas Cidades
Jovem Negro Vivo - Catarina Dantas
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Novembro é um mês marcante. Nesta quarta-feira 20, celebramos o Dia Nacional de Zumbi, líder do Quilombo dos Palmares, e da Consciência Negra, agora reconhecido como feriado nacional. Também neste mês, em 22 de novembro de 1910, teve início a Revolta da Chibata, liderada por João Cândido Felisberto, que lutou bravamente pelo fim dos castigos físicos na Marinha. No dia 7 deste emblemático mês, celebrei os 76 anos do meu pai, Cláudio, o Mestre Manteiga. Mas a alegria desse dia contrasta com a tragédia que ocorreu apenas um dia antes, quando Ryan da Silva Andrade Santos, um menino de 4 anos, foi morto, baleado durante uma ação policial enquanto brincava em frente à casa de uma prima no Morro do São Bento, em Santos. Vida e morte, lado a lado.

A expectativa de vida no Brasil era de 75,5 anos em 2022, segundo o IBGE. No entanto, pessoas negras têm, em média, uma longevidade menor, revelando desigualdades persistentes. Um estudo da Unicamp mostrou que, enquanto a população negra vive, em média, até 67 anos, a de pessoas brancas chega a 73. Em regiões como o Rio de Janeiro, essa disparidade é ainda mais expressiva: em Queimados, a média de vida para a população negra é de apenas 48 anos, enquanto em Niterói a média geral é de 70. Esses números escancaram como as desigualdades estruturais afetam diretamente a longevidade de uma parte significativa da população brasileira.

Em meus estudos sobre a presença negra em São Paulo, trabalho com os conceitos de “territórios de vida” e “territórios de morte”. Na minha dissertação de mestrado, Territórios de Morte: Homicídio, Raça e Vulnerabilidade Social na Cidade de São Paulo, investiguei como raça e vulnerabilidade social se relacionam com os homicídios na cidade. Nas periferias, onde a população negra é maioria, constatei que a violência letal afeta especialmente homens jovens e negros. Dados recentes reforçam essa realidade: em 2022, 76,5% das vítimas de homicídio no Brasil eram pessoas negras, e entre jovens de 15 a 29 anos, uma média de 62 são assassinados por dia. Esses territórios, marcados por políticas racistas e segregadoras, tornam-se o que chamo de “territórios de morte”. A segregação urbana e racial não só concentra a pobreza, mas também intensifica a violência contra a população negra.

No doutorado, aprofundei o conceito de “territórios de vida”, explorando como mulheres negras da zona leste de São Paulo transformam seus espaços em redes de cuidado e resistência. Na pesquisa intitulada Territórios de Vida: Resistências, Existências e Produção de Cuidado por Mulheres Negras, investiguei as ações dessas mulheres que, mesmo em contextos adversos, criam formas de apoiar suas comunidades. Suas práticas conectam conhecimentos ancestrais a estratégias contemporâneas de sobrevivência e fortalecimento coletivo, mostrando que, mesmo em territórios de morte, há resistência e construção de vida. Essas iniciativas revelam a capacidade da população negra de propor novas formas de sociabilidade nas cidades.

Há uma história da cidade de São Paulo que pode ser contada pela perspectiva negra. Essa narrativa não só registra memórias e contribuições da população negra, mas também nos ajuda a entender como essas comunidades estão historicamente presentes e moldam os espaços urbanos.

Um exemplo de re(existências) nos territórios periféricos é o grupo Sementeiras de Direitos, que atua em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo. O grupo organiza rodas de conversa sobre direitos humanos, direitos das mulheres, relações de gênero, direitos das crianças e adolescentes, diversidade, direitos sexuais e reprodutivos, e alimentação de qualidade. Por meio dessas ações, fortalecem mulheres e promovem a convivência e o respeito às diferenças.

Relatar essas experiências, como as das Sementeiras de Direitos, é uma forma de mostrar que, mesmo diante de desafios e desigualdades, a população negra no Brasil criou modos de convivência e respeito às diferenças que precisam ser conhecidos e valorizados.

Para promover a valorização da população negra na construção das cidades, é fundamental compreender a complexidade de suas resistências. Isso exige uma abordagem que considere fatores como raça, gênero e classe social. Nos territórios urbanos, vida e morte coexistem, entrelaçando resistência e vulnerabilidade. Historicamente, estratégias para precarizar a vida da população negra e negar seus direitos foram implementadas com o apoio do Estado e dos setores privilegiados da sociedade. Ainda assim, ao longo do tempo, as populações negras criaram formas de resistência e re(existência). Como nos ensina Conceição Evaristo: “Combinaram de nos matar e nós combinamos de não morrer.”

Na minha tese, proponho que os “territórios de vida” manifestam o  NTU – a essência da vida na filosofia africana Bantu. São espaços de convivência, onde coletivos e organizações promovem cuidado, solidariedade e celebração da vida. Essas experiências ampliam o debate sobre como nos organizamos e moldamos as cidades.

As redes de sociabilidade fomentadas por pessoas negras nos ensinam valiosas lições sobre a construção de formas de vida baseadas na solidariedade, na resistência e no cuidado. Essas comunidades criam espaços de fortalecimento da vida, sustentando conhecimentos ancestrais e práticas que desafiam um sistema que historicamente as coloca em condições de vulnerabilidade. Esse mesmo sistema promove o que se pode chamar de “morte matada”, sustentada pela lógica da necropolítica, que define quem pode viver com dignidade e quem é exposto à violência ou à morte.

Apoiar e valorizar os “territórios de vida” é essencial para construirmos cidades onde meninos negros, como Ryan, possam viver, sonhar, crescer e envelhecer com dignidade. Assim como meu pai, Mestre Manteiga, um homem negro que chegou à velhice carregando histórias e saberes, essa deveria ser uma possibilidade garantida para todas as pessoas.

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