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Remoção de casas com base no “poder de polícia” é ilegal

A chegada da pandemia não foi suficiente para evitar que a prefeitura de SP realizasse a demolição das casas sem ordem judicial

Demolição de ocupações consideradas irregulares, em 2014. Foto: Tania Rego/Agência Brasil
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Por Douglas Tadashi Magami*


No dia 3 de junho deste ano, Rodrigo, morador de uma comunidade no bairro da Vila Andrade, no município de São Paulo, entrou em contato com a Defensoria Pública de São Paulo a fim de denunciar uma ação arbitrária que ocorria na localidade onde mora. Rodrigo disse à Defensoria que funcionários da prefeitura de São Paulo haviam chegado no local pela manhã e, até aquele momento, demolido cinco casas. Segundo seu depoimento – e depois comprovado pela Defensoria –, não havia ordem judicial para o cumprimento de tal ação.

Rodrigo enviou vídeos pelo celular da Defensoria, onde demonstra que, de fato, era a prefeitura que estava usando homens uniformizados e apoio da GCM para remover as casas. A remoção das casas, sem ordem judicial, ocorreu no dia em que só o Estado de São Paulo registrou 282 novos óbitos e 5.188 novos casos de covid-19 com aumento significativo de casos e mortes na periferia da cidade.

Mas a chegada da pandemia que desnudou as desigualdades socioespaciais nas cidades não foi suficiente para evitar que a Prefeitura realizasse a demolição das casas com base no poder de polícia, ou seja, sem ordem judicial. O poder de polícia que tem como uma de suas características a autoexecutoriedade deve obrigatoriamente ser fundado e ter como limite o interesse público. 

Ainda assim, a autoexecutoriedade não existe em todas as medidas de polícia e quando ela é exercida deve-se observar o devido processo legal ainda que administrativo, que não houve no caso em comento. E qual interesse público deve ser perseguido em matéria urbanística?

A constituição no seu artigo 182 preceitua que a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus cidadãos. Ora, nesse caso, evidentemente a remoção de casas, ainda que construídas de forma irregular, afigura-se completamente inadequada aos objetivos constitucionais da política urbana mormente no contexto da pandemia que coloca ainda a saúde pública como bem a ser protegido e suprime qualquer possibilidade de urgência para o exercício da suposta autoexecutoriedade urbanística. 

Por si só, a remoção de casas pelo Poder Público com base no poder de polícia é ilegal. Isso porque além de existir o dever do Poder Público promover programas de construção de moradias, o Poder Público também tem o dever de se abster em realizar atos que violem o direito à moradia, como a remoção compulsória de moradores de baixa renda ocupantes de áreas públicas, sobretudo nos casos de inexistência de risco, sem possibilitar o direito ao contraditório e sem oferecer qualquer alternativa de moradia, eis que tal medida afronta o princípio do devido processo legal, a inviolabilidade do domicílio e configura abuso do direito de autoexecutoriedade.

O princípio do devido processo legal insculpido no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal é violado em caso de remoção compulsória por parte do Poder Público, eis que tal procedimento configura reintegração de posse por via obliqua, por meio de desforço possessório, e, em assim sendo, tal procedimento constitui-se em verdadeiro uso arbitrário das próprias razões, violando-se o próprio poder jurisdicional.

Essa ilegalidade agrava-se no contexto da pandemia covid-19, em que, evidentemente, o ato de remoção contribui sobremaneira para a propagação e contaminação do vírus seja por parte dos funcionários do Poder Público, seja por parte das pessoas que irão para a rua.

Quando o Poder Público determina a demolição de moradias, não respeita o critério da adequação do princípio da proporcionalidade decorrente do princípio constitucional do devido processo legal na medida em que tal medida não inibe a formação dos favelas, que se formam por conta do processo econômico de exclusão sócio territorial aliada à falta de uma política de habitação de interesse social eficaz.

Aliás, mesmo que fosse adequada, não respeitaria o critério da necessidade, pois a demolição das moradias é medida mais gravosa que a realização eficaz de uma política habitacional de interesse social. O problema é que essa opção é mais custosa para o Estado, e aí talvez esteja a razão pela qual se costuma demolir moradias a pretexto de aumentar o rigor da fiscalização dos assentamentos irregulares, do que realizar uma política habitacional de interesse social que possa absorver a demanda por moradia, de modo a, efetivamente, inibir a procura desenfreada da população mais pobre por espaço na cidade, ainda que este espaço seja o da exclusão, em áreas de risco ou de proteção ambiental.

Demais disso, o desfazimento das edificações sem ordem judicial viola, ainda, o art. 5º, inc. XI da CF/88, que garante a inviolabilidade do domicílio. Ora, se a intimidade deve ser preservada, de modo a se impedir que qualquer pessoa, particular ou pública, penetre na casa, sem consentimento do morador, só podendo ser razoavelmente afastada quando em situação de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou por determinação judicial, a moradia, que constitui o próprio domicílio, não pode ser demolida sem ordem judicial.

Mas, mesmo que o desfazimento das edificações seja absolutamente necessário, torna-se necessária a intervenção judicial, especialmente para garantir que a população atingida pelo desfazimento decorrente da suposta autoexecutoriedade do poder de polícia urbanístico possa ter assegurado o direito fundamental à moradia.

A prática de remoção de casas, sem a observância do direito ao contraditório e controle judicial, para quem precisa de moradia, sobretudo no contexto da pandemia, configura obscurantismo jurídico onde os fins que não se sabe quais justificam os meios empregados ao arrepio dos direitos fundamentais.


É defensor público do Estado de São Paulo. Membro do Núcleo de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública de São Paulo. doutorando em Planejamento Urbano e Regional pela FAU/USP e colaborador da rede BrCidades.

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