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Privatização do saneamento é a nova ‘galinha dos ovos de ouro’ nas cidades à venda

Em qual contexto os serviços de água e esgotamento sanitário podem trazer bom retorno financeiro para quem os opera?

Presente. A Sabesp teve lucro de 3 bilhões de reais no ano passado, mas o governador quer se livrar da estatal – Imagem: Isadora Leão Moreira/GOVSP e Sabesp/GOVSP
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Por Ricardo de Sousa Moretti e Lara Montenegro*

Não há dúvida que algumas operadoras dos serviços de saneamento no Brasil são muito lucrativas e cobiçadas. No estado de São Paulo, a Sabesp opera com lucros anuais que variam de 2 a 3 bilhões de reais e distribui generosamente dividendos aos seus acionistas, já que 49% do capital da empresa é aberto e negociado, inclusive no mercado internacional. Brasil afora, várias outras prestadoras de serviço também são “lucrativas”, mas persiste a dúvida: qual o contexto que torna possível o lucro dessas empresas?

O avanço rápido e radical da privatização dos serviços de água e esgotamento sanitário parte do pressuposto de que os mais pobres e os locais mais problemáticos continuarão não sendo atendidos. Desde quando, ainda no regime militar iniciado em 1964, as empresas estaduais foram estruturadas pelo PLANASA (Plano Nacional de Saneamento), a ótica central é que essas companhias deveriam ser autossustentáveis financeiramente, ou seja, os serviços de água e esgotamento sanitário deveriam ser financiados pelas tarifas cobradas dos usuários. Rompeu-se com a ideia do serviço de saneamento como um investimento público necessário para melhorar a saúde pública e reduzir os gastos com tratamento de doenças de transmissão hídrica.

Foi montada em vários estados uma máquina administrativa de serviços de água e esgotamento sanitário com eficiência financeira, com muitos méritos, entre os quais equipes técnicas experientes e atendimento qualificado, mas também com muitos problemas e, em especial, o fato de não contemplar os locais, as populações e os serviços que, na ótica exclusivamente financeira, são considerados um mau negócio. Publicação recente da ONU inclui o Brasil entre os países que mais rapidamente avançaram na expansão dos serviços de água e esgotamento sanitário e o “caso Brasil” é estudado em detalhe. Tal interpretação difere bastante do discurso hegemônico da grande mídia, que mostra um quadro de desgraças e abandono. Esse cenário parcial e mentiroso, de pura desgraça, serve como uma luva para o discurso de que a privatização trará novos recursos para viabilizar a chamada “universalização”.

Mas qual “universalização” é esta em que se aponta como meta para 2033 99% de atendimento com água potável e 90% de atendimento de serviços de esgotamento sanitário? Estas metas são adequadas na ótica de quem acredita na necessidade de realização dos direitos humanos ao saneamento na perspectiva da saúde pública?

Para questionar essa universalização falsificada, que vem sendo difundida como grande meta, cumpre analisar onde se situa o déficit dos serviços de água e esgotamento sanitário no Brasil, ou seja, onde precisaríamos agir para alcançar efetiva universalização. De acordo com o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) 2014-2033, o desafio da universalização dos serviços de água no Brasil é ampliar os serviços de água para 11,4 milhões de habitantes, dos quais 65% residem em área rurais. Em relação ao esgotamento sanitário, é preciso atender a novos 55 milhões de brasileiros, dos quais 36% residem nas áreas rurais. Existe um grave problema de saneamento rural, desafio que é solenemente ignorado quando se fala sobre universalização e eventual privatização, como se as metas se aplicassem apenas ao ambiente urbano!!

Porém ainda existe o grave problema dos locais que têm tubulação, mas não têm água. Levar a rede de distribuição não significa que haverá água para atendimento das necessidades das pessoas. Da mesma forma, levar a tubulação de esgotos não significa que os domicílios conseguirão se conectar à rede, ou que os esgotos serão efetivamente tratados. Em vários locais, principalmente onde se concentra a população de mais baixa renda, existe a infraestrutura hídrica, mas a água chega com intermitência e má qualidade. Em regiões inteiras, como nos bairros pobres de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, a água chega uma vez por semana.

Levar água em quantidade adequada, com tarifa social e com pressão adequada para bairros pobres e informais pode ser considerado “mau negócio”, pois o custo de infraestrutura e manutenção do serviço é alto, e não se paga com a tarifa cobrada dos usuários de baixa renda residentes nessas localidades.

Da mesma forma, levar a rede de esgotos e construir estações de tratamento não é sinônimo de que os esgotos serão efetivamente tratados, nem que haverá avanço na melhoria dos corpos de água urbanos. Isto acontece porque a quase totalidade das prestadoras de serviço de saneamento recebe pela coleta de esgotos, quer os trate ou não, quer despejem o esgoto in natura nos córregos e rios que cortam as cidades ou não. Na ótica estritamente financeira, tratar esgoto é “mau negócio”, da mesma forma que não “compensa” interceptar as ligações cruzadas entre as redes de esgotos e águas pluviais. Esta abordagem distorcida faz com que estejam contaminados locais onde o serviço, teoricamente, é 100%, ou seja, onde supostamente a coleta e o tratamento dos esgotos estariam universalizados.

O grande déficit do abastecimento adequado de água e tratamento dos esgotos está justamente nos locais onde o serviço é considerado um “mau negócio”. A questão é como impulsionar as prestadoras de serviços, públicas ou privadas, a assumirem a responsabilidade de atendimento das populações que habitam esses locais. Acreditar que as empresas privadas irão voluntariamente universalizar serviços em áreas financeiramente problemáticas é uma clara ilusão.

Contudo, se a perspectiva posta é de que basta atender à população urbana com as metas de 90 e 99% previstas na Lei 14.026/2020, a prestação dos serviços de água e esgotamento sanitário pode ser uma grande “galinha dos ovos de ouro”. No entanto, tal premissa só se confirma desde que seja possível ignorar a efetiva universalização, que seja possível atender precariamente, ou não atender, os que têm pouco dinheiro, que não seja necessário atender o ambiente rural, que aqueles que não podem pagar as tarifas possam ter os serviços interrompidos sem fornecimento de um mínimo vital, que se minimize a oferta de tarifa social e que não se fale da necessidade de implantar e operar banheiros e bebedouros públicos. Em suma, desde que possam ser adiados indefinidamente os serviços nos locais e nas condições em que são pouco lucrativos.

E aí temos a condição e o momento solenes de oferta da “galinha de ovos de ouro”, apresentando-se o falso cenário de que a privatização trará investimentos privados que viabilizarão a universalização e que, com isso, será possível manter o valor atual das tarifas, porém o argumento de que a entrada do capital privado propiciará a universalização e a melhoria da eficiência dos serviços não se sustenta diante das evidências. Por exemplo: a concessionária que atua em Manaus, município onde o serviço de água e esgoto foi privatizado há mais de 20 anos, opera com 60% de perdas na distribuição de água, quando a média nacional é de 40%, segundo dados de 2021 do Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS). Já no Tocantins, após uma experiência desastrosa de privatização dos serviços de água e esgoto no estado no fim da década de 1990, que inclusive se desdobrou em reestatização em parte dos municípios em 2013, a cobertura do serviço de água hoje é de cerca de 80%, também abaixo da média nacional, e de coleta de esgotos é de 31,6%, ante 55,8% na média do País.

Mais que tudo, o que aqueles que defendem a privatização efetivamente almejam é que as empresas privadas façam a injeção de bilhões de reais diretamente nos cofres públicos dos estados e municípios, na forma de pagamento da outorga onerosa para concessão dos serviços. Nesse contexto, vale destacar que a concessão não é feita para as empresas que oferecem as menores tarifas, nem para aquelas que farão os maiores investimentos. O serviço é concedido a quem oferece o maior montante de recursos para os cofres públicos, em arranjos orçamentários que não preveem quaisquer garantias de que tais recursos retornarão para viabilizar o saneamento dos mais pobres.

Além disso, naturaliza-se o fato de que a maior parte dos montantes pagos pelas vencedoras das licitações aos entes concedentes veio de empréstimos públicos subsidiados. Ou seja, esse dinheiro que veio para reforçar os cofres públicos, sem qualquer vinculação orçamentária com a área de saneamento, deixou de ser emprestado para as prestadoras de serviços de água e esgoto. No fim, são recursos que fogem e não que chegam para o saneamento.

Sem dúvida, no jogo do vale tudo para as eleições, ter recursos nos cofres públicos é fundamental. São Paulo está à venda! A concessão completa da empresa neste momento é bastante conveniente aos interesses de alguns, mas passa longe do interesse público. Defender a Sabesp pública envolve também pautar a necessidade de reorientação de suas prioridades para melhor atender a área rural, alcançar os mais pobres e melhorar sua eficácia ambiental. Evidentemente, isto não está no script daqueles que se interessam por negócios e lucros.

A falsa narrativa de aceleração do cumprimento das metas tenta encobrir os verdadeiros motivos desta operação escandalosa. Os valores pagos pelas empresas para obtenção das concessões se refletirão, inevitavelmente, nas tarifas cobradas, o que tornará os serviços inacessíveis à grande parte da população de baixa renda, contrariando logo de partida a premissa da universalização do acesso. Num quadro em que a fiscalização e a regulação são frouxas e em que a lucratividade é justamente oriunda de uma prestação parcial, incompleta e insatisfatória dos serviços, não é possível crer que tal receita possa dar certo.  Para acreditar que a privatização virá para a mais rápida e efetiva universalização é necessário presumir que a lucratividade deixou de ser uma prioridade das empresas privadas. Este engano poderá ter consequências muito graves para a população de São Paulo.

Ricardo de Sousa Moretti é professor visitante da UNB, integrante do ONDAS – Observatório Nacional dos Direito à Água e ao Saneamento – e membro da Rede BrCidades.

Lara Montenegro é Geógrafa e ativista na área de Saneamento e Direitos Humanos.

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