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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.
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Por que o debate urbano ainda silencia a questão racial?
As raízes raciais do urbanismo brasileiro e a centralidade do pensamento negro na Reforma Urbana Popular
No campo do planejamento urbano, de arquitetura e urbanismo, do direito e de diversas outras áreas cuja história é marcada pela majoritária, senão total, presença da branquitude, como podemos pensar em reparação?
Trata-se de uma questão ainda mais urgente quando reconhecemos que esses campos não apenas excluem corpos negros de seus espaços de formação e poder, mas, historicamente, produziram as próprias ferramentas técnicas e jurídicas de segregação racial.
Marcado pela acumulação de capital que moldou a organização territorial, social e política de uma elite concentradora de terras entre os séculos XVII e XIX, o planejamento urbano brasileiro nasceu da erradicação dos mocambos, do higienismo e da remoção sistemática de populações negras e tradicionais.
Já não é mais possível ignorar o silêncio conceitual persistente que encobre a influência de processos racializados na formação socioespacial brasileira. Reparar, pois, não implica apenas incluir corpos negros nesses espaços, mas desmontar as epistemologias colonializadas que fundamentam esse saber, reconhecendo que a técnica urbanística hegemônica é, ela mesma, um dispositivo de dominação racial.
Nossos corpos negros são muitas vezes negados nesses espaços, questionados. Precisamos nos afirmar e mostrar três vezes mais trabalho para ganharmos reconhecimento, quando não somos deixados ao “esquecimento”.
Uma negação nada acidental, mas consciente, expressão de um racismo que nos oculta inclusive dados, dificultando-nos a produção de conhecimento, num silenciamento da questão racial que impede a formulação de políticas públicas capazes de enfrentar o racismo estrutural na produção do espaço. Trata-se da manutenção do privilégio e do sistema de poder que sempre definiu quem pode produzir saber legítimo sobre a cidade.
É a lógica racista brasileira. Como apontou Jessé de Souza, as dimensões morais e políticas advêm de uma herança cultural de padrões de justiça e humilhação, e conformam a forma como a sociedade brasileira lida entre si, ou, em outras palavras, como os brancos lidam com os negros. Mas para muita gente racismo ainda é um mito e a discriminação, um eufemismo, uma piadinha…
Essa lógica materializa a reprodução de corpos e territórios constituídos como ameaças internas. A favela e a periferia são, assim, ativamente construídas como espaços de exceção onde se suspende o Estado de Direito para a administração racializada dos corpos matáveis, com mortes justificáveis ou dores naturalizadas. Segue recusando-se a nomear o sistema que define quais vidas importam e quais podem ser deixadas para morrer.
Para reparar, a branquitude precisa ceder espaço, precisa incentivar, sair de cena. Para reparar, nossas organizações precisam constituir espaços de forte presença negra, sem questionar se somos ou não capazes daquela tarefa. Ceder aqui não é gesto de generosidade, mas a devolução histórica do que nos foi apropriado, desde o reconhecimento de nós, povos originários e tradicionais, negras e negros, enquanto alicerce para a materialidade do urbano deste País.
Quando se fala de segregação nas cidades, logo se pensa nas relações de classe, mas não podemos esquecer que ela é também racial. Esse é um debate que tem avançado em diversos campos militantes, mas nos estudos sobre cidades, em especial na arquitetura e urbanismo, no direito e em certos campos elitistas, a raça ainda é um fator escanteado.
Nessa perniciosa “tradição” nacional de silêncio racial, habilita-se que a segregação seja tratada como questão social “neutra”, ocultando que a produção da cidade “informal” é deliberadamente racializada a serviço da mais-valia de uma elite branca.
Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Beatriz Nascimento e tantas outras já nos ensinaram. Por que ainda estamos batendo na mesma tecla? Acho que sabemos a resposta: olhar para a segregação racial no Brasil requer sensibilidade. Pensar negro, desinterditar o pensamento negro, requer gente negra estudando e falando por si, ganhando espaço, sendo incentivada a apostar no seu futuro. No futuro deste País.
Bem nos lembrou Tássio Silva no último Congresso Brasileiro de Direito Urbanístico, em outubro deste ano, as palavras de Milton Santos: “O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode efetivamente existir”. Trazendo à tona como o campo do planejamento urbano, e tantos outros, podem ser efetivamente negros.
Ainda acreditamos. Ainda estamos aqui. Para decolonizar a racionalidade nacional que nos vê como problema a ser solucionado; para desmercantilizar a moradia; para desmilitarizar os territórios periféricos; para regularizar e nomear os territórios negros; para garantir a decisão popular vinculante. O mundo que pode efetivamente existir é aquele onde o direito à cidade seja inseparável do direito à vida, não hierarquizado pela raça, cujos territórios sejam desvulnerabilizados e adaptados de maneira antirracista.
Nos últimos anos, a Rede BrCidades, enquanto espaço de militância, tem questionado a falta de presença negra nas nossas organizações. E estamos avançando. A mensagem é direta: não há como enfrentar a questão urbana sem que se enfrente a questão racial. São indissociáveis.
No último fórum, consolidamos a bandeira da Reforma Urbana Popular, que se achega para acender uma chama, como um grito de guerra. Convida, ou mais que isso, impulsiona a rede a pensar raça, classe e gênero como base estruturante das discussões, estudos e espaços de composição. Para um projeto de País.
Projeto esse que busca contar e fazer a história pelo olhar das camadas populares. De como o negro construiu esse Brasil, de como as mulheres são a base da economia e o sobretrabalho o motivo do enriquecimento de outros. Mas também pulsando nossa alegria de viver, desembranquecendo os lugares que pisamos, enquanto aprendemos sobre ancestralidade desde cedo.
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