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Oportunidades e desafios do ano novo paulistano

Em 2021, moradores de São Paulo deverão participar da elaboração da revisão do plano que estabelece os rumos da política urbana da cidade

Foto: iStock
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Por Rosana Yamaguti, Paula Burgarelli Corrente e Rayssa Saidel Cortez*

O próximo ano promete ser intenso para os paulistanos. Além dos desdobramentos da segunda onda da Pandemia de Covid-19, a prefeitura de São Paulo comandará um dos processos participativos que mais impactam o rumo da cidade: a revisão do Plano Diretor Estratégico (PDE). Durante as campanhas eleitorais para prefeito, a revisão do PDE figurou entre as principais pautas de alguns dos candidatos. Mas, por que esse plano gera tanto interesse? O que ele estabelece? O que influi na vida dos cidadãos paulistanos?

Os Planos Diretores, difundidos no Brasil a partir de meados do século passado, ganharam protagonismo na política urbana nacional após sua incorporação na Constituição Federal de 1988 e no Estatuto da Cidade (Lei Federal nº 10.257/2001). Como ferramentas de planejamento urbano, os PDEs tornaram-se a principal proposta para solucionar os problemas que ainda persistem nas nossas cidades, elaborados com participação da população e contendo instrumentos de combate à especulação imobiliária, de garantia de terrenos para produção de habitação social e de proteção às áreas de interesse ambiental, dentre outros, além de ter influência na dinâmica do mercado imobiliário e na produção do espaço urbano. Entretanto, o descompasso entre o discurso e a prática, faz com que a aplicação de alguns desses planos se restrinja à cidade “legalizada”, cujos bairros já estão consolidados, o que acaba por aprofundar desigualdades espaciais e a segregação socioambiental, agravada pelas condições climáticas mais recentes. É importante que a criação e a revisão desse instrumento de gestão urbana sejam pautadas pela população para que, de fato, representem demandas significativas ao futuro dos municípios.

No caso de São Paulo, o PDE (Lei nº 16.050/2014), aprovado após um grande processo participativo, revisou o plano anterior (Lei nº 13.430/2002) e estabeleceu diversos novos instrumentos, diretrizes e regramentos com o objetivo de conduzir o desenvolvimento urbano, em consonância com a agenda ambiental, a justiça social e a melhoria da qualidade de vida da população como um todo. Além de instrumentos legais, o PDE designou possibilidades de desenho e de melhorias no uso dos espaços urbanos e rurais, detalhes que culminaram em reconhecimentos e prêmios internacionais. Vale ressaltar a função do restabelecimento da Zona Rural como um marco para políticas públicas que consideram as diferentes dinâmicas territoriais no município, tais como as voltadas à agricultura familiar, tão necessárias para a soberania alimentar e regeneração ambiental de toda a cidade.

Principais regramentos do PDE de São Paulo e pontos a serem considerados em sua revisão

Na revisão prevista para o próximo ano, caberá à próxima gestão avaliar se a política urbana implementada até agora tem contribuído para o alcance dos objetivos estabelecidos pelo PDE e quais pontos precisam ser ajustados, contudo, é importante ressaltar que esse deve ser um processo construído coletivamente e com ampla participação popular. 

Em termos gerais, o PDE dividiu a cidade em Macrozonas e Macroáreas, estabelecendo diretrizes e parâmetros específicos em função das diferentes características desses territórios. A Macroárea de Estruturação Metropolitana (MEM), formada pelas orlas fluvial (Rios Tietê, Pinheiros e Tamanduateí) e ferroviária, foi reconhecida como território estratégico que conecta centralidades em âmbito metropolitano, devendo, por isso, ser objeto de Projetos de Intervenção Urbana (PIUs) específicos para definição do desenho urbano e de futuros usos.

Macroárea de Estruturação Metropolitana

Dentre as novidades do Plano, o destaque que os PIUs adquiriram na política urbana municipal demanda atenção aos objetivos desses instrumentos e seus benefícios. Conforme apresentados, os PIUs configuram processos que visam transformações urbanísticas, econômicas e ambientais, implementados por meio de instrumentos como as Operações Urbanas Consorciadas e as Áreas de Intervenção Urbana, possibilitando que os recursos arrecadados sejam reinvestidos em seu perímetro, sempre pautados pela justiça social. Assim, a implantação de PIUs tem impacto nas medidas redistributivas propostas pelo PDE, uma vez que estão sendo implementados nas áreas com maior interesse do mercado imobiliário e que apresentam maior potencial de arrecadação de recursos. Entretanto, esses projetos podem ser propostos tanto pelo poder público quanto pela iniciativa privada, o que pode causar conflitos de interesse – um exemplo é a proposta do PIU Vila Leopoldina, pela iniciativa privada, dentro do perímetro do PIU Arco Pinheiros, integrante do projeto da MEM e elaborado pela Prefeitura.

Outra medida estruturadora estabelecida pelo PDE foi a orientação do crescimento da cidade em função das linhas de transporte público de massa. Para tanto, foram demarcadas as áreas de influência dos Eixos de Estruturação da Transformação Urbana, que determinam as quadras da cidade onde se deseja a transformação urbana por meio de um maior adensamento construtivo e populacional, de uma melhoria da qualidade urbana e do desincentivo ao uso do transporte individual. Um dos pontos de atenção na revisão do PDE é o interesse do mercado na liberação de parâmetros construtivos nos Eixos (flexiblização dos regramentos que estabelecem número mínimo de unidades residenciais e de vagas de estacionamento) e nos miolos de bairro (em especial, liberação de gabarito de altura máxima), o que enfraqueceria a proposta de adensamento ao longo do transporte público. Por isso, é importante que a sociedade civil esteja atenta aos riscos dessas tentativas de flexibilização do PDE e da Lei de Zoneamento que podem resultar no estímulo ao adensamento construtivo e populacional em miolos de bairro, onde não há infraestrutura adequada para o impacto dos pretendidos empreendimentos. 

Em busca de maior justiça territorial, uma das estratégias estabelecidas pelo PDE de 2002 e mantida na lei atual, é a cobrança pelo potencial construtivo adicional de empreendimentos que construam acima do coeficiente de aproveitamento básico – Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC). A lei atual instituiu um coeficiente de aproveitamento básico único para toda a cidade, baseado na aplicação do princípio da igualdade entre os lotes do município e amplia a possibilidade de diminuição de desigualdades no território, uma vez que os recursos obtidos pela OODC são destinados ao Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb) e devem ser aplicados em medidas redistributivas de melhoria urbana, como programas de Habitação de Interesse Social, implantação de corredores de ônibus ou construção de creches e UBS. Entretanto, a fórmula atual da OODC beneficia os empreendimentos que mais constroem, e este é um destaque deve ser avaliado na revisão do PDE. 

O PDE estabelece percentuais mínimos obrigatórios de investimento dos recursos do Fundurb para aquisição de terrenos para produção de HIS e políticas de mobilidade urbana (30% para cada). A sociedade civil organizada deverá estar atenta aos riscos de os percentuais mínimos de investimento via Fundurb serem alterados, prejudicando os objetivos desenhados no início. Apesar do argumento da atual gestão em priorizar a “responsabilidade fiscal”, em momentos de crise de arrecadação da receita municipal, os gestores tenderam a buscar fontes alternativas de financiamento público, como é o caso do Funderb. Nesse sentido, a Lei Nº 17.217/2019 flexibilizou as disposições do PDE em relação ao Fundurb, possibilitando que os percentuais mínimos que deveriam ser destinados à aquisição de terrenos para produção habitacional fossem também utilizados na produção de HIS em si e que os que deveriam ser destinados à implantação dos sistemas de transporte público coletivo, cicloviário e de circulação de pedestres fossem aplicados também em melhorias nas vias estruturais.

Outro instrumento que já era regrado no município, mas que ganhou destaque com a legislação atual foi a Transferência do Direito de Construir (TDC), cujo objetivo é o incentivo à preservação de bens de interesse cultural, a obtenção de terrenos para implantação de corredores de ônibus ou parques planejados, a preservação de áreas de propriedade particular de interesse ambiental, ou a implantação de programas de regularização fundiária, ou provisão de HIS. Entretanto, a aplicação da TDC com doação de imóvel voltado a parques planejados demonstrou que a fórmula estabelecida pelo PDE promove uma significativa multiplicação no potencial construtivo transferível nesses casos, podendo impactar na arrecadação de OODC e nos recursos do Fundurb. Para evitar distorções, a revisão do PDE deverá pautar na utilização adequada dos incentivos redutores de OODC  por parte dos empreendedores, tais quais a fachada ativa, uso misto, doação de calçada e fruição pública. Muito além de beneficiar o empreendimento, esses incentivos carregam objetivos importantes para o norteamento da produção do espaço urbano e garantem passeio público adequado, condições de aproximação das residências e comércio, entre outros ganhos para a cidade.

A demarcação de Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), instrumento que reserva áreas de favelas ou loteamentos irregulares para programas de urbanização, ou lotes vazios para a produção de Habitação de Interesse Social (HIS), instituídas no município pelo Plano Diretor anterior, foi ampliada pelo PDE. A partir de análises nos regramentos das ZEIS e no conceito de HIS, essas áreas passaram a ser majoritariamente destinadas a famílias com renda de até três salários mínimos. Também foram mantidos incentivos à produção de HIS voltada a famílias com renda de até seis salários mínimos em todo o território do município, independente da demarcação de ZEIS, com gratuidade de cobrança de OODC desses empreendimentos. Ainda na política habitacional, uma inovação do PDE foi a Cota de Solidariedade, que exige a produção de unidades HIS em empreendimentos com mais de 20 mil m² de área construída computável, podendo, alternativamente, construir unidades em outro empreendimento, ou doar terrenos ou recursos para o Fundurb, específico para produção de HIS. Até o momento, nove empreendimentos atenderam a Cota de Solidariedade no município, sendo que sete doaram recursos para o fundo e dois produziram unidades no próprio empreendimento. Com isso, na revisão da lei, caberia a discussão de tornar obrigatória, e não facultativa, a adoção da Cota de Solidariedade no próprio empreendimento a ser licenciado. 

Outros instrumentos voltados à indução da função social da propriedade estabelecidos pelo Estatuto da Cidade, como o Parcelamento, Edificação e Utilização Compulsórios (PEUC), o IPTU progressivo no tempo e a desapropriação com títulos da dívida pública, só passaram a ser efetivamente aplicados após a aprovação do PDE, com a criação de um departamento específico vinculado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano. Essa estrutura da gestão urbana disponibilizou um mapa colaborativo para que a população indique imóveis que se encontrem vazios e possam ser objeto de notificação. Esses instrumentos visam combater a ociosidade especulativa de imóveis localizados em áreas com infraestrutura consolidada e podem ter o potencial de integrar questões de economia urbana a estratégias de combate ao déficit habitacional  e aos interesses das políticas municipais de habitação, educação, saúde, assistência social, entre outras. Todavia, vale ressaltar aqui que, com a mudança da administração municipal em 2017, foram medidas que perderam força no Município.

O cenário atual do Plano Diretor Estratégico

A Política de Desenvolvimento Urbana desenhada no PDE inclui diversas outras políticas e sistemas, como a Política de Desenvolvimento Econômico Sustentável, a Política Ambiental, a Política e o Sistema de Saneamento Ambiental, a Política e o Sistema de Mobilidade, entre outros. Também, estabelece a necessidade de elaboração de planos vinculados a essas políticas. Considerando a importância e a urgência da questão da habitação no município, destacamos o Plano Municipal de Habitação, vinculado à Política de Habitação Social, como ponto de atenção em relação à aplicação do PDE. Encaminhado para a Câmara Municipal em 2016, até hoje este plano não foi aprovado. Outros, como o Plano Municipal de Desenvolvimento Econômico, nem chegaram a ser encaminhados. Além desses, o Plano de Ação Climática segue não finalizado e sem justificativas públicas, o que parece minimizar a centralidade dos eventos extremos que já são vivenciados pela população nas áreas mais ambientalmente frágeis.

Não menos importante, o processo de revisão do PDE deverá fortalecer ainda mais os instrumentos de participação social já previstos, aperfeiçoando a efetiva atuação dos membros, em especial da representação da sociedade civil dentro desses colegiados que discutirá e fiscalizará as ações públicas frente aos desafios urbanos impostos. Além da colaboração da população na elaboração e revisão dos planos, é fundamental a retomada das funções deliberativas dos conselhos, destituídas pelo governo Dória, para que a gestão pública seja compartilhada com toda a sociedade. 

O cenário atual é agravado pelos reflexos da pandemia de Covid-19 e as políticas ultraliberais atualmente em voga que já refletiram na substituição do Programa Minha Casa Minha Vida pelo Programa Casa Verde e Amarela, em cortes nos subsídios à Faixa 1 do antigo programa federal e, nos âmbitos municipal e estadual, no direcionamento da política habitacional para as Parcerias Público-Privadas, cujo desenho não é capaz de atender a população mais pobre. Ou seja, para o processo de revisão, é importante discutir acerca da efetividade dos incentivos e do papel no poder público para produção habitacional de interesse social, uma vez que a produção pelo mercado não tem atendido essa população, e, desta forma, ampliar as iniciativas populares de autogestão dos empreendimentos que enfrentem o déficit habitacional, pautando modelagens como as Parcerias Público-Populares (PPPop) e a aprovação do Plano Municipal de Habitação.

Nas mais diferentes escalas e níveis governamentais, retrocessos com os desmontes e enfraquecimento de órgãos e instituições importantes para o contexto municipal, como a Coordenadoria de Vigilância em Saúde (COVISA), estadual, no caso da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), a EMTU (Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos) e a EMPLASA (Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano), e federal, com a política desastrosa do Presidente e seus Ministros em vários setores e a extinção, desmonte, ou enfraquecimento de órgãos como o Ministério da Cidade, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), entre tantos outros. Ao invés de pactuar soluções para a crise urbana que se vê na Região Metropolitana de São Paulo, as medidas governamentais têm se efetivado no sentido da privatização e concessões de uso sem a devida discussão com a sociedade civil, visando exclusivamente o atendimento de interesses privados em detrimento do interesse coletivo. Frente a esse cenário, a retomada da democracia começa necessariamente pelo poder coletivo e local e, por esse motivo, seria revolucionário ter a cidade de São Paulo como referência, tal qual em outros momentos difíceis da história brasileira.

Rosana Yamaguti é arquiteta e urbanista, mestra em Planejamento e Gestão do Território (UFABC) e técnica da SP Urbanismo.

Paula Burgarelli Corrente é bacharel em gestão de políticas públicas, mestra em Planejamento e Gestão do Território (UFABC) e técnica da SMDU.

Rayssa Saidel Cortez é arquiteta e urbanista, mestra e doutoranda em Planejamento e Gestão do Território da UFABC e integra a coordenação do Núcleo São Paulo do Br Cidades.

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