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O que as mãos da favela não deixam esquecer
O discurso de que ‘a favela venceu’ celebra o êxito de alguns e encobre as carências que seguem coletivas
“Sankofa”, o emblema africano que representa um pássaro voando para frente com a cabeça voltada para trás, simboliza a intuição de olhar para o passado, procurando algo que foi negligenciado ou esquecido, a fim de reforçar o presente e planejar o futuro. No entanto, ao examinar a memória da urbanização das favelas, percebe-se um esvaziamento histórico – a perda da memória coletiva – que tem se intensificado progressivamente, particularmente nas gerações mais jovens. Um fator que contribui diretamente para o enfraquecimento da luta política de reivindicação por direitos nas favelas. A origem deste esquecimento é complexa e possui múltiplas facetas: abrange questões geracionais, em que a transmissão da história oral já não encontra o mesmo eco nas linguagens das novas plataformas de comunicação, juntamente com a falta de registros e documentação dessa memória.
Quando essa história é contada, quase sempre o é pelo olhar de fora — o das instituições, dos gestores, dos proponentes políticos. Há muitas pesquisas sobre impactos de programas governamentais e políticas públicas para urbanização de favelas, mas raramente se ouve quem esteve do outro lado: aqueles que foram alvo dessas políticas e, ao mesmo tempo, seus agentes mais ativos – os que se mobilizaram para que elas existissem, lutando pela chegada de água e de luz, pela consolidação e pela regularização fundiária. Chimamanda Adichie nos ensina que o perigo da história única não está só no que se conta, mas no que se cala: nesse caso, o silêncio imposto sobre a luta e o protagonismo dos moradores.
Mutirão na Favela Vila Prudente. Créditos: Acervo do MDF, década de 1990.
Por outro lado, mesmo entre os próprios moradores, o ponto crítico está na individualização da narrativa. O discurso de que “a favela venceu” celebra o êxito de alguns e encobre as carências que seguem coletivas, como a falta de infraestrutura, a insegurança da posse da terra, a inconclusão de obras de urbanização e de equipamentos públicos essenciais e a ausência de direitos básicos. Ao transformar conquistas isoladas em símbolo de superação individual, esse discurso enfraquece a luta política por mudanças estruturais que só se concretizam pela força comunitária.
A recuperação da memória que buscamos não é um exercício de nostalgia, mas um ato político: o de testemunhar, transmitir e manter viva a continuidade dessa ação e luta coletiva. Ela nasce da forma como os próprios moradores narram e interpretam suas trajetórias enquanto pessoas que seguem lutando pela conclusão das obras de urbanização e dos processos de regularização, sem deixar de se orgulhar das conquistas já alcançadas. Verdadeiros fazedores do futuro, nas palavras de Paulo Freire ao Movimento de Defesa das Favelas (MDF). A escuta dessas histórias e o levantamento de informações sobre intervenções em 17 favelas da zona leste de São Paulo foram sistematizados em nove tópicos, que deram origem a uma exposição. Fragmentos de um conjunto muito maior, esses tópicos revelam a força e a relevância dessas experiências para pensar tanto a favela que temos quanto a favela que queremos. Juntos, os moradores nos contam que:
“Ocupamos terra para morar” e “construímos a infraestrutura básica com nossas próprias mãos”. Desde então, “reivindicamos por mais serviços básicos junto à Prefeitura” e “nossas casas passaram a ser feitas em alvenaria”. Mesmo quando “alguns governos construíram casas para a gente”, “trabalhamos para a construção coletiva de mais moradias do nosso modo”. “Resistimos às propostas dos governantes que não nos incluem”, “alcançamos a execução de obras complexas e necessárias” e “seguimos lutando pela regularização fundiária e melhorias das nossas favelas. (Texto gerado a partir dos títulos (entre aspas) da exposição “Quais histórias de urbanização contadas pelas nossas favelas?” com base em oficina participativa junto aos moradores.)
Exposição “Quais histórias de urbanização contadas pelas nossas favelas?”, no âmbito do II Encontro de Favelas da Zona Leste (agosto/2025), Leonardo Piqui, 2025.
Essas histórias revelam que são essas pessoas que, com as próprias mãos, ergueram — e continuam erguendo — não só suas casas, mas a cidade inteira que as cerca. Ruas, escadarias, ligações de água e energia, espaços de convivência, tudo nasce do trabalho direto dos moradores. A liderança comunitária Jaqueline Ferreira dos Santos, da Favela Amadeu, traduz essa força em gesto e palavra. Pela própria experiência, ela encarna o que o resto da cidade insiste em não reconhecer: a capacidade coletiva de construir, concretamente, o lugar onde se vive.
“O esgoto foi feito por mutirão. Quando eu tinha 10 anos, que foi quando foram fazer os esgotos. Os esgotos foram feitos pelos próprios moradores. E a minha mãe, com três filhos, não tinha marido. Ela estava trabalhando. E foi estipulado que cada família abrisse a vala correspondente à sua porta, ao seu tamanho de frente. E eu sou a filha mais velha. Não tinha outra pessoa, então eu abri. A gente abriu e fizemos. Eram valas que eram maiores que nós, para poder passar esse esgoto. Mas eu e meus irmãos abrimos, porque não tinha essa coisa, não tinha o que fazer. Abrimos e foi onde tive consciência de que fazia parte daquele lugar”. (Jaqueline Ferreira dos Santos, moradora da favela Amadeu, ligada ao MDF, em gravação ao documentário “Quais histórias de urbanização contadas pelas nossas favelas?”).
Ainda assim, essa é uma história incompleta. Apesar dos esforços dos moradores na construção do próprio espaço e na constante reivindicação de direitos junto ao Estado — que em alguns momentos resultaram em conquistas reais -, muito ainda resta por fazer diante da complexidade da vida nas favelas. No campo das políticas públicas, é fundamental que os governos avancem na urbanização ena regularização desses territórios em diálogo com quem vive neles, garantindo infraestrutura, equipamentos coletivos, moradia digna e integração plena à rede urbana da cidade. No plano da política local, é necessário pensar em formas de continuidade na organização da luta iniciada há décadas por moradores e lideranças que hoje somam muitos anos de luta e de idade, inclusive pensando na inserção de novos atores que vêm atuando no território. Cabe às novas gerações assumir esse legado, reinventá-lo, atualizá-lo e seguir adiante na construção de futuros mais justos e possíveis para as favelas.
“Não que a gente não viva de utopia, mas o Padre Patrick Clarke, fundador do MDF, sempre fala uma questão fundamental. A gente tem que falar de utopias possíveis. E as utopias possíveis são essas, de mobilizar, do miúdo. Pouca gente, em um lugar sem importância, consegue fazer muitas mudanças. (…) É como a parábola do grão de mostarda. É pequeno, mas, quando semeia, fica gigante.” (André Delfino Silva, coordenador do MDF, em gravação ao documentário “Quais histórias de urbanização contadas pelas nossas favelas?”)
Isso evidencia que a trajetória de muitas favelas brasileiras foi marcada por esperança, criatividade e luta popular constante, fundamentada no trabalho e na construção coletiva. Durante o processo de formação desses assentamentos, tanto o acesso a serviços essenciais para a subsistência, como a água e a eletricidade, quanto os direitos fundamentais, como saúde, educação e moradia, exigiram ações sociais coletivas, como os mutirões, para serem efetivados.
Em razão de essas memórias, feitas de mãos e de luta, estarem cada vez mais ameaçadas pelo esquecimento, se encontraram o Movimento de Defesa das Favelas (MDF) – histórico na articulação das favelas da zona leste de São Paulo – e o Centro de Estudos da Favela (CEFAVELA), sediado na Universidade Federal do ABC (UFABC), que busca produzir conhecimento sobre e com esses territórios. Em campos distintos, mas movidos por um mesmo propósito, MDF e CEFAVELA uniram forças para resgatar a dimensão política inscrita na memória de formação de algumas favelas paulistanas. Desse encontro nasceu uma história comum: contada por quem a escreveu com as próprias mãos, sobre o que não se pode (e não se quer) esquecer.
As mãos da favela não permitem o esquecimento: é por elas que a história se constrói, se reivindica e se escreve. Mãos que empunham enxadas, passam tijolos, erguem faixas, batem palmas, redigem suas próprias palavras. O encontro entre um movimento social e um centro de estudos dedicados à defesa das favelas mostrou – e documentou – que é possível contar essas histórias de mãos dadas. Esse gesto tem um valor imenso, sobretudo em um tempo em que outras mãos insistem em apontar armas e apertar gatilhos contra as favelas, como o que se viu, tragicamente, na recente chacina promovida pela ação policial do estado do Rio de Janeiro, que deixou ao menos 120 mortos nos Complexos da Penha e do Alemão. Diante disso, a pergunta é inevitável e define de que lado da história queremos estar: a quais mãos decidimos dar as nossas?
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