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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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O desafio de planejar a cidade e o papel da participação social

Não há dúvida: a lei é insuficiente. A aplicação da lei é uma construção social e precisa ser equacionada na esfera política

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No contexto brasileiro, planejar as cidades para torná-las menos predatórias ambientalmente e socialmente mais justas tornou-se uma quase utopia diante da força e influência que determinados setores e segmentos sociais exercem sobre o Estado.

No campo do planejamento urbano, o plano diretor se constituiu como o principal instrumento de política urbana, mas seu papel é objeto de questionamentos. Historicamente, os instrumentos urbanísticos serviram aos interesses dos proprietários de terra e do mercado imobiliário. É inédita a sua utilização para diminuir as desigualdades no uso e apropriação do espaço urbano.

Em 2001, a aprovação do Estatuto da Cidade – lei federal que regulamentou o capítulo da Constituição de 1988, que trata da política urbana e estabeleceu instrumentos para fazer cumprir a função social da propriedade urbana – gerou uma expectativa exagerada de um novo rumo para as políticas habitacionais e urbanísticas.

Em grande medida, a aprovação do Estatuto da Cidade (EC) resulta da retomada do projeto de reforma urbana pelo Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU). Partiu-se do pressuposto da subordinação do direito individual de propriedade ao interesse coletivo, dando ênfase à função social da propriedade urbana em detrimento dos interesses especulativos.

Com esse objetivo, o EC regulamentou instrumentos, tais como: as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) de vazios, que cumpririam importante papel de “reservar” terras vazias e bem localizadas para a produção de habitação social; e o Parcelamento Edificação ou Utilização Compulsórios (PEUC), um instrumento urbanístico que obrigava que os imóveis fossem parcelados, edificados, ou utilizados, mas que foi sucedido pelo Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) progressivo no tempo, com o objetivo de conter a retenção especulativa de imóvel urbano e induzir à sua utilização, democratizando o acesso à terra urbana. Além destes, o EC regulamentou a Outorga Onerosa do Direito de Construir, visando compatibilizar a ocupação do território com a infraestrutura disponível, gerando recursos para a recuperação ambiental de assentamentos precários e a construção de habitação social e equipamentos urbanos nas periferias.

O EC estabeleceu a obrigatoriedade de os municípios aprovarem ou revisarem seus Planos Diretores incorporando as diretrizes e os instrumentos presentes na nova lei federal e determinou que tais planos fossem elaborados de forma participativa, reunindo um conjunto amplo de atores, interesses e agendas.

Planos Diretores: um desafio para os municípios

No período pós-aprovação do EC, uma nova geração de planos diretores foi produzida para atender à exigência legal de regulamentar a função social da propriedade urbana. Acreditava-se que a produção dos novos planos representaria um ponto de inflexão na trajetória de evolução das cidades brasileiras, historicamente marcadas pelo patrimonialismo, pela segregação socioespacial e pela degradação ambiental.

Mas, nesse cenário de expectativas de um novo rumo para a política urbana, surgiram indagações relacionadas ao efetivo potencial do novo marco regulatório no sentido de alavancar mudanças. Diante do quadro de desigualdades em que se deu a formação social brasileira, quais as reais possibilidades de transformação representadas pelos novos instrumentos?

A implementação das diretrizes e instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, uma vez que depende de sua incorporação pelos planos diretores municipais, pode ganhar contornos variados dependendo das políticas municipais, da correlação de forças no âmbito municipal e das diversas interpretações feitas, tanto pelo poder executivo, como pelo judiciário. Se, por um lado, a autonomia municipal permite as necessárias diferenciações entre realidades municipais completamente diversas no país, por outro, joga para o nível municipal a disputa política em torno da regulamentação dos instrumentos, que podem ser mais ou menos efetivos a depender dos rumos e resultados da disputa.

A obrigatoriedade levou a um aumento do número de planos diretores no país, entretanto, na grande maioria dos casos, não se tornaram efetivas a regulamentação e implementação dos instrumentos urbanísticos. Muitos municípios não incorporaram os instrumentos no plano diretor ou não os tornaram autoaplicáveis.

Um estudo produzido pela Universidade Federal do ABC sobre a aplicação do Parcelmento Edificação e Urbanização Compulsórias (PEUC), mostrou que até o final de 2014, do universo de 110 municípios brasileiros (capitais estaduais e municípios com população acima de 100 mil habitantes), somente 25 regulamentaram o instrumento de forma a torná-lo aplicável e apenas oito haviam aplicado o instrumento até o final de 2015.

Já as Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) de vazios foram previstas na maioria dos planos diretores, mas o instrumento está longe de ser efetivado. Questões como a delimitação de áreas inadequadas, a demarcação de reduzida quantidade de terra, a indefinição de perímetros e a necessidade de regulamentação posterior comprometem o alcance do objetivo central do instrumento, que é reservar terra para habitação social.

A aplicação desses instrumentos teria um papel relevante para que projetos urbanos e habitacionais inclusivos alcançassem seus resultados ou até mesmo para minimizar os efeitos negativos de programas como o Minha Casa Minha Vida (MCMV). Muito se debateu sobre os problemas de localização dos empreendimentos do MCMV, o que se tornou a principal polêmica em torno do programa. As avaliações apontaram que muitos empreendimentos foram construídos em áreas inadequadas, isto é, localizadas nas periferias das cidades, distantes das centralidades que concentram os postos de trabalho e, muitas vezes, desprovidas de equipamentos e serviços urbanos. Para evitar esse resultado, teria sido muito importante a articulação da lógica do financiamento às estratégias de desenvolvimento urbano.

Alguns municípios experimentaram aplicar os instrumentos e, em alguns casos, foi possível verificar resultados positivos. Em outros, o tempo decorrido ainda não permite avaliar seus efeitos.

Não bastam as leis, é necessário participação social

Avaliações produzidas pela Universidade Federal do ABC, apontam que na Região do Grande ABC foram delimitadas seis milhões de metros quadrados de áreas vazias como ZEIS, sendo a grande maioria consideradas adequadas e bem localizadas. Até 2016, foram contratadas na região cerca de sete mil unidades do MCMV – Faixa 1 –, sendo que 89% dessa produção se deu em áreas demarcadas como ZEIS de vazios e com boa inserção urbana. Esses dados confirmam que o município pode desempenhar importante papel por meio da aplicação de instrumentos urbanísticos redistributivos.

Em São Paulo, a legislação urbana de 2014/2016 demarcou cerca de 28,25 km² de ZEIS sobre imóveis vazios, subutilizados ou não utilizados, sendo 14,8 km² em glebas ou lotes não edificados na área urbana e 8,6 km² em imóveis subutilizados, não utilizados ou deteriorados. A aplicação do PEUC teve início em 2014, na gestão do prefeito Fernando Haddad. Até 2018, foram notificados 1.384 imóveis, que totalizam pouco mais de 2,9 milhões de metros quadrados de terra e cerca de 590 mil metros quadrados de área construída. A experiência de São Paulo destaca-se pela notificação em escala de imóveis não utilizados, em sua maior parte edifícios vazios na área central da cidade. Buscou-se dialogar com as finalidades de adensamento de perímetros centrais e de promoção de Habitação Social. As avaliações ainda estão sendo produzidas, mas é certo que a efetividade desses instrumentos depende de sua articulação com estratégias de desenvolvimento urbano e com o financiamento habitacional.

O impasse na implementação da agenda urbana instituída pelo Estatuto da Cidade não se relaciona, apenas, com a dificuldade de se aplicar os instrumentos, ou seja, de “tirá-los do papel”. Esse impasse relaciona-se também com a efetividade dos instrumentos, quando aplicados, de alcançarem as finalidades para as quais foram concebidos, relacionados ao ideário reformista de democratização do acesso à terra e à moradia. As experiências em curso mostraram que a aplicação dos instrumentos pode ser direcionada para diferentes finalidades, podendo tanto se aproximar das finalidades associadas a esse ideário, como também contribuir para processos de concentração e valorização imobiliária.

Há indícios de que, em alguns contextos, a aplicação do PEUC foi utilizada para viabilizar projetos de revitalização urbanística com propósitos de dinamização e valorização imobiliária de uma determinada região, induzindo ao espraiamento da malha urbana e à formação de novos vazios urbanos, objetivos contrários à sua finalidade que é a de otimização da infraestrutura existente.

As ZEIS de vazios, em alguns contextos, reforçaram o padrão periférico de produção da habitação de interesse social e, em outros, favoreceram a concentração de terras em mãos do setor financeiro-imobiliário. A arrecadação financeira associada à outorga onerosa do direito de construir fica aquém do esperado, considerando que a fórmula de cobrança baseia-se, na maioria das vezes, na planta genérica de valores que não acompanha os preços fundiários praticados no mercado. A ausência de dados confiáveis e constantemente atualizados dificulta a utilização do instrumento com o objetivo de otimizar a infraestrutura instalada na cidade.

Não há dúvida que a lei é insuficiente. A aplicação da lei é uma construção social e precisa ser equacionada na esfera política. A participação da sociedade civil nas instâncias institucionalizadas, visando a construção de pactos mais amplos, mostrou-se importante, mas insuficiente. Como lembra Ermínia Maricato, não se muda a correlação de forças e disputas em torno da produção da cidade apenas com leis e instâncias institucionais de participação.

Também não há dúvidas de que foi exagerada a expectativa de mudança de rumo da política urbana com a edição do Estatuto da Cidade. Não seria fácil limitar o direito de propriedade e a lei não diminui a força histórica do capital fundiário-imobiliário. Não se pode deslocar a agenda e o eixo de luta limitando-os ao campo da regulação urbanística. Entretanto, os instrumentos são ferramentas importantes e é preciso disputar seu sentido e direcionamento. Esse direcionamento depende de inserir o debate acerca da produção da cidade na vida cotidiana das pessoas, ampliando a esfera política de discussão do planejamento urbano.

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