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Não confunda crime organizado com movimentos populares organizados

Ao invés de criminalizar os movimentos, Justiça e Poder Público deveriam trabalhar ao seu lado para promover o repovoamento necessário

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*Colaborou Nabil Bonduki, relator do Plano Diretor de São Paulo.

A recente prisão preventiva por cinco dias, em São Paulo, de reconhecidas lideranças populares dos movimentos de moradia, é um episódio que acende uma luz de alerta sobre possibilidades de confusões e entendimentos enviesados da lei e da justiça, em um momento em que parece que toda e qualquer acusação é aceitável. Os recentes vazamentos do The Intercept Brasil mostram o quanto se tornou possível, no Brasil, utilizar-se da lei como instrumento de perseguição política. É possível que estejamos diante de um caso semelhante neste momento.

Na semana passada, várias lideranças de movimentos de moradia que atuam no centro da cidade de São Paulo em ocupações de prédios vazios foram presas. As acusações são de que elas teriam praticado extorsão junto aos moradores das ocupações desses prédios, cobrando valores abusivos de quem participa do movimento. A acusação partiu de um inquérito policial aberto por ocasião da queda do Edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em 2018. O que acontece neste caso é a generalização de uma situação específica de uma ocupação para o conjunto do movimento de moradia que atua na região central de São Paulo.

No caso daquele edifício, há, de fato, fortes suspeitas de que os organizadores da ocupação efetivamente praticavam atos criminosos, fazendo-se passar por movimento organizado para buscar legitimação. Assim, estabeleceram naquele prédio uma fachada para a venda de drogas e para o trato abusivo de pessoas muito pobres e vulneráveis – muitos imigrantes recém-chegados – que viam no pagamento de uma mensalidade extorquida a única alternativa para encontrar um abrigo, mesmo que em situação extremamente precária e de risco, como mostrou ser aquele prédio que acabou desabando em razão de um incêndio.

Um desses organizadores, inclusive, era sabidamente próximo a uma figura do crime, hoje na prisão, que comandou a invasão do Cine Marrocos – neste caso, invasão é o termo correto, pois trata-se do crime organizado atuando –, desmantelada em 2016, quando foi encontrado com grande quantidade de crack destinado à Cracolândia, além de escopetas e outras armas de fogo. Naquele prédio moravam imigrantes de baixíssima renda, extorquidos com uma cobrança abusiva que passava dos 500 reais mensais.

Que o crime organizado está envolvido em algumas ocupações da área central, não há dúvida. Ele também está em outras áreas da cidade, até mesmo em condomínios de luxo. Vários empreendimentos do Minha Casa Minha Vida, já prontos para serem entregues às famílias, foram invadidos à mão armada pelo crime organizado. Este está se tornando uma espécie de agente imobiliário informal, construindo condomínios em áreas irregulares, como se viu no caso do edifício que desabou em comunidade no Rio de Janeiro, ou em inúmeras ocupações de terra em áreas de mananciais, entre outras, em São Paulo.

No caso das ocupações de prédios vazios no centro da cidade, o crime faz mais um enorme desserviço à sociedade, confundindo-se com movimentos organizados sérios que ocupam prédios com o intuito legítimo de denunciar o mau uso da propriedade urbana. E não hesita a entrar em confronto direto com estes, como mostram os inúmeros relatos de movimentos de moradia tendo que enfrentar ataques do crime organizado visando tomar-lhes os prédios que ocuparam.

No entanto, os responsáveis pelo inquérito cometem um grande equívoco ao decretar, indistintamente, a prisão dos organizadores que estiveram à frente do caso do Wilton Paes, onde parece ter existido ações criminosas e, no mesmo ato, envolver lideranças legitimas do movimento de moradia que nada têm a ver com o caso daquele edifício. Ao generalizar o inquérito para movimentos de moradia sérios que atuam para formular políticas públicas e transformar edifícios ociosos em projetos habitacionais, os investigadores deram um pulo inaceitável que promove uma confusão que abre portas para o uso da lei como instrumento de perseguição política.

De fato, não há absolutamente nada que torne comparáveis as invasões sob o mando do crime e as ocupações organizadas de prédios vazios no centro que visam dar função social a imóveis ociosos. Para se entender essa questão, é necessária uma pequena, mas importante, inversão da lógica: o “problema” do centro não são as ocupações, mas sim os prédios que estavam vazios.

A manteneção de imóveis vazios e subutilizados deve ser combatida, de acordo com o estabelecido no Estatuto da Cidade e no Plano Diretor Estratégico. A legislação urbanística federal e municipal objetiva dar uso a imóveis ociosos, uma vez que custam caro para a sociedade, já que se encontram em áreas muito bem servidas por infraestrutura urbana. Pontos de ônibus, rede de esgoto, fornecimento de água e luz, coleta de lixo, além de todos os serviços que a área central oferece, tudo isso custeado pela sociedade, são desperdiçados quando um imóvel é deixado vazio – algumas vezes por pura especulação – ao invés de ser usado. Além disso, tais imóveis tornam-se um risco social, por se degradarem com perigo de desabamento, e serem espaços propícios para ratos e outros vetores de doenças. Muitos deles, inclusive, devem fortunas à Prefeitura por não pagarem seu IPTU.

A partir dos anos 1990 e, especialmente, após a aprovação do Estatuto da Cidade, os movimentos sociais identificaram nesses edifícios um grande potencial para garantir o direito à cidade. Com tanta gente sem casa, por que deixam tantos prédios sem gente?

Morar no centro, lugar que concentra cerca da metade da oferta de empregos da cidade, é uma alternativa que deveria ser priorizada pelas políticas de habitação, pelos ganhos econômicos com a diminuição da pendularidade urbana que faz tanta gente viajar horas da periferia para seu trabalho. Ocupar esses imóveis passou a ter um triplo objetivo: denunciar o absurdo que é sua ociosidade, possibilitar uma moradia temporária para os “sem teto” e buscar viabilizar um projeto habitacional de reabilitação dos edifícios. Nessa perspectiva, os verdadeiros movimentos de moradia prestam, na verdade, um serviço à cidade.

É necessário evidenciar que esses movimentos, ao adentrar em um desses imóveis, sempre faz uma intervenção inicial de qualificação para colocá-lo em uso. São reestabelecidas a energia e o abastecimento de água e realizadas a limpeza e pintura do prédio. A partir de então, são criadas regras básicas de segurança, como a colocação de extintores, e, quando possível, os elevadores são reativados. Ao contrário do que supõe o senso comum, existem regras para organizar uma ocupação pacífica. Essas regras envolvem famílias, muitas com crianças, que veem na ocupação uma solução de vida e uma forma de militância pela causa da moradia.

Muitas ocupações se tornaram uma referência, dando nova vida ao bairro com atividades culturais e cidadãs. Quem esteve na recente festa junina organizada na ocupação 9 de Julho – que está sempre ameaçada de despejo –, com suas salas de uso comunitário e cultural, pôde perceber isso.

Foi por causa dessa receita que algumas políticas públicas foram estruturadas com bastante sucesso. Quem passar pela Rua Conselheiro Crispiniano, em frente ao Teatro Municipal, verá lá um lindo prédio, bem organizado, comprado e reformado pelo movimento de moradia com recursos do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), somado a uma complementação do município.

Em outros casos, como o do conhecido Hotel Cambridge, o imóvel foi desapropriado pela Prefeitura para reforma e destinado a uma associação de moradores, após rigorosíssimo edital de seleção, como contrapartida aos recursos disponibilizados pelo PMCMV. Em todos esses casos, os prédios eram ociosos, perigosos e abandonados mas, graças à iniciativa conjunta de movimentos e do Poder Público, vêm se transformando em moradia digna. A cidade só tem a ganhar com isso.

Essas razões certamente pesaram em recente decisão de um juiz em São Paulo que suspendeu por 180 dias a reintegração de posse de uma ocupação na Rua do Ouvidor, de propriedade do Governo do Estado, para permitir que os ocupantes se organizem para comprar o imóvel e manter nele as atividades culturais que vêm realizando. No acordo, os ocupantes se comprometem a dar ao edifício as condições mínimas de segurança exigidas. Como se vê, há caminhos para potencializar um uso desses prédios muito mais adequado do que deixá-los ao abandono, graças aos movimentos que os ocupam.

Até que seja encontrada uma solução definitiva que permita a reabilitação desses edifícios ocupados, são necessários, como em qualquer condomínio, recursos para garantir condições básicas de segurança, limpeza e funcionamento. Por essa razão, são cobradas taxas mensais, definidas as assembleias.

Estranho isso soar como algo abusivo para quem está habituado a pagar condomínio nos edifícios de classe média e alta da cidade. É exatamente a mesma lógica: dividir entre os moradores as despesas para a correta manutenção do prédio onde vivem. Nestes casos, não há nenhuma relação com as extorsões exercidas por chefes da bandidagem sobre pessoas pobres e vulneráveis, em ocupações precárias que disfarçam bocas de fumo.

O inquérito que levou lideranças de movimentos de moradia à prisão, uma situação inaceitável que deve ser revertida, fez essa confusão. Acusa essas pessoas de cobrarem mensalidades em suas ocupações, tratando essa prática normal como se fosse igual à cobrança extorsiva exercida pelos grupos criminosos nos prédios que controlam. Assiste-
-se a uma inaceitável manipulação que visa, no fim, criminalizar os movimentos organizados de moradia, confundindo-os com a bandidagem.

Há por trás disso uma clara manobra política. O que se quer é impedir a “popularização” da cidade, através de um movimento preconceituoso que considera que ocupações são mais condenáveis do que manter um imóvel sem uso. O que estamos vendo é mais uma vez um movimento de uma sociedade elitista, que prefere ver a sagrada propriedade preservada e protegida – mesmo que de prédios irregulares e perigosamente vazios – a uma ocupação “popular” da área central. Não percebem que, urbanisticamente, é um tremendo tiro no pé, pois seus preconceitos só ajudam a degradar cada vez mais o centro, em vez de dar força a quem lhe traz nova vida.

O uso da lei como instrumento de criminalização dos movimentos populares não pode continuar, muito menos banalizar-se. É fundamental que se restabeleça a justiça e que se permita aos movimentos – como o nome indica, organizados – que atuem para melhorar o centro dando vida e uso a tantos imóveis ociosos.

A polícia e uma parte do Ministério Público deveriam se preocupar em investigar as iniciativas “imobiliárias” do crime organizado que estão espalhadas pela cidade, ao invés de perseguir lideranças reconhecidas dos movimentos de moradia, como Dona Cármen. Esses criminosos estão em casos como a ocupação do Edifício Wilson Paes, até os “loteamentos” irregulares nos mananciais; da expulsão de moradores pobres de conjuntos do Minha Casa Minha Vida, até os empreendimentos de prédios informais em favelas.

Ao invés de criminalizar os movimentos, Justiça e Poder Público deveriam trabalhar ao seu lado para promover o necessário repovoamento das nossas áreas centrais, promovendo o uso habitacional democrático e aberto para a população trabalhadora mais pobre.

Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital.

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