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Manaus: uma grande ocupação urbana no coração da Amazônia

A maior parte do seu território é habitada por populações pobres que, sem o direito à moradia, resolveram se unir para lutar por casa

Foto: iStock
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Não é exagero afirmar que a cidade de Manaus é uma grande ocupação. A maior parte do seu território é habitada por populações pobres que, sem o direito à moradia, resolveram se unir para lutar pela casa própria.

Segundo a SEMMAS (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade), mais de 235 focos de ocupações foram registradas entre os anos de 2015 e 2019. Tal situação desafia líderes comunitários e gestores públicos impondo-lhes a exigência de um amplo planejamento urbanístico, assim como a instalação de serviços públicos de saúde, educação e transportes.

Em 11 de dezembro de 2015, após a reintegração de posse da intitulada Cidade das Luzes, na zona oeste de Manaus, a presidente do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas anunciou a constituição de uma força-tarefa para o combate às “invasões”. No entanto, a mesma força-tarefa não encontrou eco nos parlamentos nem nos executivos municipais e estaduais para discutir implementação, monitoramento e avaliação de uma Política Habitacional adequada.

Em Manaus, no entorno do Conjunto Habitacional Viver Melhor e da extinta ocupação Monte Horebe, que sofreu processo de reintegração de posse em março de 2020, vivem cerca de 20 mil famílias em risco iminente de despejo. Considerando a existência de quatro pessoas por famílias, falamos de cerca de 80 mil pessoas que podem ser afetadas. Trata-se de um complexo com nove ocupações ao redor de um conjunto habitacional executado pelo Governo Estadual com recursos do Programa Minha Casa Minha Vida (faixa 1), onde há 8.895 unidades habitacionais. Praticamente uma cidade.

Quantidade aproximada de famílias no local

Além destas ocupações, os imensos conjuntos habitacionais uniformes, construídos pelo Governo do Estado, também sofrem com diversas carências de infraestrutura. Desde a sua entrega, moradores sentem-se abandonados pelo Estado. Diversas são as denúncias que facções criminosas comandam o comércio e a venda de entorpecentes na região. Por este motivo, foram realizadas no local grandes operações policiais como a “Treme Terra”, em 2018, e a “Domínio da Lei”, em janeiro 2020, com o objetivo de prender homicidas, narcotraficantes e suspeitos de envolvimento em roubos, A ação foi proposta depois das denúncias de que moradores estavam sendo expulsos de suas casas no Viver Melhor. Esse cenário de violência tem sido comum e encontra muita semelhança ao que acontece nas demais comunidades e ocupações nas outras zonas da cidade de Manaus.

MORADIA COMO DIREITO

Resultante da falta de oferta de moradias e de lotes urbanizados, as ocupações surgem como alternativa para famílias que procuram um pedaço de terra para morar. A consequência disso é o crescente agravamento social que está produzindo loteamentos clandestinos descontínuos e desarticulados da malha urbana. Em meio a toda essa problemática, encontram-se milhares de famílias necessitadas de um pedaço de chão para morar. Pessoas que passaram a conviver amontoadas em pequenas construções feitas de papelão, plástico, isopor, madeiras apodrecidas e outros materiais impróprios para a construção, mas que transformam esses apetrechos em moradias, mesmo que estas não disponham do mínimo necessário para abrigá-las com dignidade.

A questão da moradia em áreas irregulares tem levado esses moradores a serem tratados como “criminosos”, sob o argumento de estarem ocupando um espaço de terra que, “pelos princípios legais”, não lhes pertence. Por um lado, tal fato demonstra a ausência ou insuficiência de políticas públicas voltadas para o problema habitacional e urbano, mas, por outro lado, se evidência uma forma de segregação espacial e social.

No livro “Planeta Favela”, o teórico do urbanismo Mike Davis disse que “por vezes, a chamada invasão de terras pode tornar-se um drama político digno de discussões e de matérias jornalísticas” Porém, para as famílias, a questão é muito mais que debate, trata-se de um drama vivenciado por aqueles que desafiam conquistar a terra e construir uma moradia para abrigar a família. São situações que tendem desmobilizar, fragilizar e colocar as famílias em situação de permanente sofrimento, sendo, portando, um verdadeiro atentado do Estado aos direitos fundamentais da pessoa humana.

As estratégias autoritárias de erradicação das ocupações privilegiam a remoção, ou sua extinção pura e simplesmente. Essas ocupações e seus ocupantes são os principais alvos daqueles que deveriam promover, através de políticas públicas de Estado, o acesso à terra e à habitação. A forma pejorativa dada às famílias de ocupantes, chamando-os de “invasores”, descreve bem a forma usada para criminalizar os movimentos sociais e populares e para excluir ainda mais as famílias sem teto. No caso de Manaus, o papel do Estado na produção do espaço urbano não se dá na perspectiva da mediação, mas da defesa dos interesses que se colocam claramente contrários aos das populações locais, como nos explicou o saudoso geógrafo José Aldemir de Oliveira.

A cada dia que passa, as reintegrações de posse têm sido cada vez mais frequente. A eliminação das “invasões” vêm sendo tratadas com a famosa política da tolerância zero por parte do Estado. Porém, o que realmente deveria ser intolerante é a omissão dos agentes públicos ao não tratarem essa situação como uma questão social. É uma verdadeira bomba relógio programada para explodir a qualquer instante. São situações exaustivamente já denunciadas pelos movimentos de moradia à Relatoria Nacional da Moradia Adequada Plataforma DHESCA BRASIL, atualmente Relatoria Nacional do Direito à Cidade, mas que permanecem sem soluções.

AS DIFICULDADES DAS OCUPAÇÕES

Nas ocupações o que se pode observar é a capacidade do Poder público de articulação e mobilização das secretarias. São verdadeiros batalhões para realizar os despejos dos ocupantes, mas que se demonstram impotentes na hora de articular-se para discutir com a sociedade a busca de alternativas para resoluções dos conflitos, e ainda menos competentes na hora de propor uma discussão coletiva de programas de política habitacional para o Estado e o Município.

O fenômeno da ocupação deve ser entendido não como um acidente, mas enquanto produto de um processo social complexo no qual, normalmente, se conjugou a necessidade de moradia por parte de um determinado segmento populacional e pela omissão – ou melhor, a insuficiência de ação – do poder público.

Talvez não haja algo mais presente para o indivíduo que seu sentido de pertencimento a um determinado espaço. Essa é a expressão que tem levado à precarização dos níveis de vida da população nas cidades e que configura a questão urbana, não somente no déficit de moradias, mas também na criminalização e exclusão econômica cultural e espacial. Porém, no Brasil, o movimento popular que haje no auxílio desses indivíduos ainda sofre forte pressão na defesa dos direitos humanos, na luta pela terra e por habitação saudável. É a criminalização dos defensores da pessoa humana.

Cabe ainda ressaltar que, em meio à luta coletiva deflagrada pela população pobre para garantir o acesso à terra e habitação, também existe a denominada “indústria da invasão”. Ela é constituída por grileiros de terras que, em alguns momentos, até chegam a induzir ocupações, pensando em retornos vantajosos para si, como a desapropriação paga pelo Governo. Nesse contexto, também há a participação de líderes disfarçados que, aproveitando-se da inércia do Estado, buscam obter vantagens pessoais, políticas e financeiras através de programas e projeto habitacionais. Com esse propósito inescrupuloso, esse grupo de aproveitadores estimulam a “invasão de terras” para atingir seus objetivos que estão longe de ser a garantia de moradia para a população de baixo poder aquisitivo.

Nessas comunidades conduzidas por exploradores, não há infraestrutura necessária e os poucos benefícios realizados pelo poder público só acontecem em época de eleições, ou por intermédios de políticos assistencialistas que visam transformar o retorno pelo “benefício realizado” em votos. O fornecimento de energia chega até essas comunidades por meio de ligações clandestinas, colocando em risco constante a vida dessas pessoas, mas, principalmente das crianças. Para que tenham acesso à água – fonte de vida – são aproveitadas as águas da chuva ou de poços artesianos e cacimbas que, em sua maioria, são impróprias para o consumo humano.

Sem programas e políticas habitacionais adequadas, esses cenários de desilusão, segregação e destruição tendem a continuar ocorrendo no Estado do Amazonas.

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