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Entre o Estado e as facções criminosas

Estatuto da Cidade determina que a política urbana deve garantir o direito a cidades sustentáveis

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Por Marcel Mangili Laurindo

A poucas centenas de metros do centro de um dos mais badalados balneários de Florianópolis e sob o olhar passivo das autoridades, facções criminosas expulsam famílias de suas humildes casas: justamente o que ocorreu com Vanessa e Sandro. Depois de viver dez anos na Vila do Siri, uma comunidade às margens das dunas da praia dos Ingleses, o casal resolveu deixá-la em 2016.

A Vila do Siri é um retrato das diferenças sociais, econômicas e espaciais que marcam a sociedade brasileira. Hoje, cerca de 220 famílias vivem lá. Situada em uma Área de Preservação Permanente, a região começou a ser ocupada, no fim dos anos 1970, por migrantes. Duas décadas se passaram e, no início de 2001, o município de Florianópolis planejou a remoção e o reassentamento de seus habitantes. Por falta de verbas, o projeto nunca saiu do papel.

Já em 2017, 35 casas da comunidade foram marcadas com um enorme X. A prefeitura de Florianópolis declarou que elas seriam demolidas por estarem abandonadas e por se encontrarem em Área de Preservação Permanente. A Polícia Militar deu outra explicação: todos esses imóveis pertenceriam a criminosos que foram expulsos da localidade por rivais de outra facção. Os moradores também tinham a sua versão: muitos dos habitantes deixaram o local por medo da violência. Mais de 50 policiais do Batalhão de Operações Especiais foram escalados para dar cobertura aos 100 servidores municipais que levariam as casas ao chão.

Para a Polícia Militar, sua demolição evitaria que elas fossem ocupadas por outros criminosos. O imóvel de Vanessa e de Sandro havia sido marcado com um X. Ele foi poupado porque, entre o Estado e as facções, o casal comprovou a “licitude” de seu lar. De nada adiantou: as autoridades não impediram sua usurpação por uma das gangues da região.

Um casal luta por seus direitos

Temerosos com a escalada de violência na região, disputada pelo Primeiro Grupo Catarinense e o Primeiro Comando da Capital, Vanessa e Sandro decidiram alugar sua casa.

A facção local viu, aí, uma boa oportunidade de negócio e, empreendedora, passou a cobrar, ela mesma, os aluguéis do inquilino lá instalado. Aterrorizado, o locatário abandonou o lugar.

Com a casa vazia, Vanessa e Sandro tentaram retornar à Vila do Siri, mas as ameaças do Primeiro Grupo Catarinense os fizeram mudar de ideia. A deixar tudo para trás – inclusive toda a mobília, que lá permanecera desde sua mudança –, os dois abandonaram Santa Catarina. Antes disso, porém, levaram seu caso à Polícia Civil catarinense, que tratou de repassá-lo ao Ministério Público do Estado de Santa Catarina.

Pasta com documentos sob o braço, Vanessa e Sandro bateram às portas da Defensoria Pública do Estado de Santa Catarina no início de 2018. Dias depois, o Poder Judiciário analisava sua ação: incapaz de lhes garantir segurança, o Estado haveria de ser responsabilizado pelos danos materiais e morais que lhes foram causados.

A certa altura do relatório estampado no Inquérito Policial instaurado para tratar do caso, o Delegado de Polícia destaca que o problema enfrentado pelo casal não é novo. “Trata-se de uma situação corriqueira em favelas onde o crime organizado consegue se instalar em virtude da omissão estatal em diversos setores”, afirma. E complementa: “a favela do Siri é um local onde o único braço do Estado a entrar é a polícia”.

O Estatuto da Cidade determina que a política urbana deve garantir o direito a cidades sustentáveis, “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações

O Delegado de Polícia foi arrolado como testemunha na ação judicial movida pelo casal. Ele expôs a impotência do Estado diante das facções criminosas: Vanessa e Sandro morreriam se tentassem retornar para sua casa. “A gente não podia chegar lá e expulsar as pessoas à força e expliquei que mesmo ela entrando com qualquer tipo de ação de reintegração de posse ela corria risco de vida, porque iam tirar a pessoa da casa, ela ia voltar na casa, não tem um policiamento ostensivo no local”, declarou ele.

O Juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública de Florianópolis não se impressionou. Na sentença em que indeferiu os pedidos de Vanessa e Sandro, ele anotou que “aferir a omissão do Estado no que tange à prestação de segurança pública configuraria malpropício subjetivismo” – expressão que, mesmo no bolorento jargão do Direito, parece exótica. Descontente, a Defensoria Pública foi ao Tribunal de Justiça.

Em agosto de 2020, os Desembargadores concordaram com o casal: “o Estado tinha plena ciência dos acontecimentos e, nesta condição, possuía o dever de agir específico de impedir a continuidade dos atos lesivos, garantindo a segurança dos autores”, pontuaram. Vanessa e Sandro não levaram, porém, tudo o que pediram. Para o Tribunal catarinense, eles não perderam seu imóvel, que ainda pode vir a ser retomado. Mas o abalo moral ocasionado pela omissão estatal lhes rendeu uma indenização de 50 mil.

Decisões desse tipo são raríssimas. O Poder Judiciário costuma ecoar a tese de que o Estado só pode ser objetivamente responsabilizado por sua omissão nos casos em que ele teria o dever específico de agir para evitar certo resultado. Do contrário, qualquer cidadão haveria de ser indenizado por ter sofrido um assalto.

De quem é, afinal, o monopólio da violência?

A rigor, tudo o que foi dito até aqui diz respeito às fundações do Estado. De fato, muitos foram os que se propuseram a pensar as origens das principais instituições políticas ocidentais. Há um sem-número de teorias a tal respeito. Uma das mais prestigiadas é aquela que toma o Estado como o resultado de um contrato entabulado por certos indivíduos.

Thomas Hobbes é um dos principais pensadores contratualistas. Para ele, cansados de viverem em meio a uma guerra de todos contra todos, os homens resolvem depositar todo o seu poder nas mãos de um soberano. Em troca, nada exigem dele – apenas a garantia de segurança. Em seu Leviatã, defende ele que “o fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita”.

Séculos mais tarde, Max Weber também tratou do tema. Em Ciência e Política: Duas Vocações, ele afirma que “o Estado não se deixa definir, sociologicamente, a não ser pelo específico meio que lhe é peculiar, da forma como é, peculiar a todo outro agrupamento político, a saber, o uso da coação física”. Ainda segundo o sociólogo alemão, o Estado contemporâneo, “única fonte do ‘direito’ à violência”, constitui “uma comunidade humana que, dentro dos limites de determinado território reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física”.

A segurança pública é um dos deveres do Estado brasileiro. Se, omisso, ele não a garante, deve ser responsabilizado. Se, a defenestrar trabalhadores de suas casas, facções criminosas ditam as regras na Vila do Siri, parece evidente que o Estado não cumpre o que havia prometido: ele não presta o serviço de segurança de que se incumbiu. Se, enfim, aquele que detém o monopólio da violência não é capaz de desbaratar duas ou três gangues em um bairro, fica difícil sustentar sua legitimidade.

Não se trata de um discurso de “lei e ordem”. O problema da segurança pública não pode ser relegado aos segmentos e setores conservadores ou reacionários. Cabe também aos progressistas discuti-lo, pensando as coisas em conjunto – pensando sobretudo nas desigualdades sociais.

Marginalização e segregação econômica não combinam com o direito à cidade

Em Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana, David Harvey trata o direito à cidade como um direito humano e emancipador. Ali, o geógrafo britânico denuncia, por meio de análises econômicas concretas, a mercantilização do espaço. Mas a cidade, um ambiente coletivo, não pode ser encarada como uma simples mercadoria submetida aos caprichos de uns poucos proprietários. Nela, tudo é compartilhado: a mobilidade, os recursos naturais, os espaços de lazer.

A marginalização política, a segregação econômica e a especulação imobiliária não combinam com o direito à cidade, conforme também afirma Henri Lefebvre em seu O Direito à Cidade: “o direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar”. O filósofo francês lembra que a criação do espaço é fruto de relações políticas e econômicas. Outrora, na Antiguidade, a rua era o espaço da Ágora e do jardim. Na Idade Média, ela passou a ser um simples local de comércio e de passagem: caminho para o consumo e para o trabalho, ou seja, a via pública deixa de ser o lugar da deliberação. Ainda de acordo com Henri Lefebvre, “o direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade”. “Projeção da sociedade sobre um local”, a cidade é uma criação coletiva cujo destino está intimamente ligado à sorte do próprio homem.

No Brasil, o Estatuto da Cidade reconhece isso. De acordo com tal norma, o Plano Diretor de boa parte dos municípios será discutido, de modo direto, por seus cidadãos. Se com a especulação imobiliária promovida por grandes grupos empresarias, sua cidade se transformou em uma mercadoria, a população poderá e deverá lutar contra isso. “A ancoragem espacial”, lembra Michel Foucault em Ditos e Escritos, “é uma forma econômico-política”.

O Estatuto da Cidade determina que a política urbana deve garantir o direito a cidades sustentáveis, “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações”. Não há, aí, lugar para segregações políticas, econômicas e espaciais. Ao lado da população marginalizada, a Defensoria Pública tratará de lutar para que o direito humano à cidade seja realmente garantido – inclusive na Vila do Siri.

Marcel Mangili Laurindo é Defensor Público do Estado de Santa Catarina, mestre em Sociologia Política, Doutorando em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e colaborador da Rede BrCidades.

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