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Em Caxambu (MG), a necessidade de preservação de um patrimônio imaterial

O movimento de cercamento dos comuns atingiu de uma forma inusitada na cidade mineira

Paisagem de árvores sem folhas no outono, beirando o rio Bengo, no Parque das Águas, em Caxambu. Foto: iStock
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Em todo o mundo, assistimos a renovadas formas de produção de problemas econômicos com expressão nas cidades, de desigualdades e da associação entre forças autoritárias e dinâmicas de expropriação da vida. No Brasil, há séculos que a concentração fundiária se dá majoritariamente por escolhas políticas que se sobrepõem aos interesses públicos.

Sempre praticados com violência e sob o falso discurso do medo da perda de terras para supostos invasores, os sistemas de pilhagem do patrimônio público, agora, avançam sobre processos econômicos ligados à alimentação. Porém, nesta semana, esse movimento de cercamento dos comuns atingiu de uma forma inusitada na cidade de Caxambu-MG: trata-se da judicialização, por uma empresa estatal, do registro da coleta de águas minerais no Parque das Águas Lysandro Carneiro Guimarães, em Caxambu, como bem cultural imaterial.

De maneira inédita no País, no dia 23 de fevereiro de 2021, o Decreto Municipal 2866/2021, assinado pelo prefeito do município, homologou a aprovação do registro que buscou reconhecer a importância da coleta de água mineral nas fontes do referido parque para a memória e cultura da população. O registro garante que os moradores tenham o respaldo do COMPAC (Conselho do Patrimônio Histórico e Artístico de Caxambu) para prolongar essa prática ancestral de coletar águas minerais às futuras gerações. Ainda que a motivação do decreto seja a ampliação de receitas por meio do ICMS do Patrimônio Cultural, como declara a Secretaria do Turismo da cidade, a determinação está amparada pelo dossiê/inventário elaborado por um conjunto de pesquisadores da Universidade Federal de Lavras (PPGA/UFLA) em parceria com a Diretoria de Cultura de Caxambu, a partir da rotina nas fontes de água e do cotidiano dos moradores.

A proteção do ato de coleta de água mineral na fonte como patrimônio cultural e imaterial destaca a relação histórica dos povos com as águas, mas, também, incorpora essa prática como testemunho dos processos de urbanização e da produção da paisagem cultural da cidade. São as águas que orientam os percursos na cidade de Caxambu, e também foram elas que possibilitaram a criação de espaços coletivos, apropriados e protegidos pela população caxambuense através de práticas ancestrais de uso e exploração sustentável das águas.

NEOLIBERALISMO E MEMÓRIA

No caso em tela, além do ineditismo do reconhecimento da prática de coleta de água como patrimônio imaterial a ser preservado, chama atenção a inusitada tentativa de questionamento pelo próprio poder público, por meio da medida judicial interposta pela empresa estatal Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais (CODEMGE-CODEMIG). A argumentação do poder público se baseia na busca da defesa da propriedade da empresa pública sobre os direitos minerários de exploração das águas no referido parque, que o ato de registro coloca em risco. Isso porque as águas minerais são regulamentadas pelo Código de Águas Minerais de 1945, e não pela Lei de Águas (Lei 9433/1997), que considera questões do desenvolvimento sustentável. Ainda, a empresa Codemge/Codemig possui o direito de lavra das fontes de águas minerais, obtido junto à Agência Nacional de Mineração, do Parque das Águas Lysandro Carneiro Guimarães, em Caxambu.

Parece contraditório – ou mesmo paradoxal – que o poder público, que deveria zelar pela memória e cultura de sua população, esteja invocando a propriedade privada como argumento contra uma medida de reconhecimento exatamente da dimensão cultural e ancestral de uma relação estabelecida entre parte de sua população e um recurso natural presente em seu território. Essa aparente contradição só pode ser compreendida e problematizada a partir da compreensão de dois processos presentes neste caso concreto: (I) o crescente empresariamento da administração pública que, sob a lógica neoliberal, passa a se dirigir nos termos de uma empresa privada; (II) as práticas de neoextrativismo que cada dia mais ameaçam as práticas estabelecidas sob o paradigma da comunalidade.

O primeiro processo de empresariamento crescente da administração pública está diretamente relacionado com os princípios neoliberais de austeridade, meritocracia e assunção de riscos pelos agentes. Sob o paradigma neoliberal, a administração pública busca a adoção de práticas empresariais privadas – busca de lucro, valorização de suas ações, superexploração dos trabalhadores e terceirização dos serviços – para atrair investimentos. Com isso, deixa de ter como norte de sua atuação o bem-estar da população e a garantia de seus direitos para ter objetivos de alcance do maior lucro possível.

Por sua vez, o segundo processo – também acentuado sob o neoliberalismo – se refere à conversão de bens e práticas comuns, fora do mercado, em mercadorias. Esse processo se dá exatamente pelo estabelecimento de direitos de propriedade. A propriedade garante ao seu detentor o direito exclusivo de obter renda e lucros pela comercialização do bem ou exploração de certas práticas.

O sociólogo Raimundo Faoro em sua obra “Os donos do Poder”, de 1958, descreveu um poder político exercido em causa própria pelo estamento burocrático – o patronato político brasileiro – que utilizava a máquina política e administrativa em seu próprio benefício, para manutenção de poder, prestígio e riqueza. Mais recentemente, a hibridação neoliberal público-privada tem borrado os limites entre propriedade privada e bens comuns, sob o argumento da governança.

A cooperação entre capital privado e Estado aparece nas constantes concessões de recursos naturais para exploração de multinacionais como Nestlé, Bayer e Monsanto, reafirmando o Estado como agente ativo na pilhagem de riquezas e bens. O cercamento pela concessão do direito de exploração das águas minerais por empresas multinacionais do ramo alimentício espoliam a memória e as vivências comuns associadas ao seu uso por forças capitalistas com a conivência do poder público. Para além da questão ambiental, e na medida em que compõe a construção social de um quadro simbólico que ajuda a reforçar a identidade individual e coletiva, a memória coletiva da população também precisa ser entendida como um bem comum.

O caso das práticas de coleta de água mineral nas fontes do parque das águas Lysandro Carneiro Guimarães, em Caxambu, é um exemplo claro de ambos os processos em curso, em um ato de cercamento de um comum estabelecido por meio de práticas históricas de uma população com um recurso natural presente no seu território.

COCHABAMBA E CAXAMBU

No final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, um processo similar de cercamento de um bem comum estabelecido a partir de um recurso natural aconteceu em Cochabamba, na Bolívia, onde o governo local decidiu privatizar e vender a empresa responsável pelo abastecimento de água, SEMAPA (Serviço Municipal de Água Potável e Esgotos). Esse processo foi acompanhado pela aprovação de uma legislação que estipulou o uso e a exploração da água como um direito exclusivo e privado de propriedade. Historicamente, a escassez de água em Cochabamba – devido à sua localização e sua geografia – resultou na adaptação da população em buscar soluções de forma autônoma. Os cochabambinos que por muitos anos sofreram com a falta de investimento em infraestrutura e captação de água, se mobilizaram contra a privatização que afetava diretamente a sua sobrevivência e o uso tradicional autogestionado feito por camponeses e povos indígenas, numa relação de reciprocidade entre homem e natureza. Por fim, a organização e mobilização da comunidade ali constituída fez com que o governo revertesse a privatização e revogasse a lei que assegurava o monopólio das águas aos interesses privados.

A Guerra da Água em Cochabamba evidencia duas questões fundamentais no enfrentamento às políticas neoliberais e o cercamento dos comuns: a importância da mobilização social e a conscientização da população sobre o grave impacto da governança neoliberal no seu cotidiano. A luta dos cochabambinos traz à tona o tema do comum para além de um bem natural ou cultural, mas também como um princípio político e comunitário que se estabelece a partir da resistência à individualização e privatização inerentes ao capitalismo. Essa mobilização também revela o reconhecimento da natureza como um contínuo indispensável para a (re)existência mútua do cidadão e dos bens naturais que o cercam.

Em Caxambu, temos o reconhecimento das águas como bem cultural imaterial, vital para a memória, cultura e paisagem. Contudo, considerando o questionamento pelo próprio poder público na esfera estadual sob invocação da propriedade do direito de exploração das águas no Parque das Águas Lysandro Carneiro Guimarães, faz-se necessário considerar o papel da população na luta pela proteção do ato cultural, histórico e ancestral de coleta de água mineral na fonte. Toda privatização significa expropriação de algo que tem a ver com a construção coletiva. Como observado em Cochabamba, é possível que a mobilização social e a conscientização da população sejam decisivas no enfrentamento à lógica neoliberal e ao neoextrativismo das águas de Caxambu.

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