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Eleições municipais podem consolidar um momento de transformação nos transportes públicos

Iniciativas federais são fundamentais, mas as prefeituras serão responsáveis pela implementação das medidas que impactarão a vida de milhões

Eleições municipais podem consolidar um momento de transformação nos transportes públicos
Eleições municipais podem consolidar um momento de transformação nos transportes públicos
Em algumas cidades, como São Paulo, o transporte público é gratuito em todos os domingos. Em outras haverá gratuidade por causa da eleição - Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
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Nos últimos anos, o transporte público se consolidou como um dos maiores problemas das cidades brasileiras. Tarifas extremamente altas, atrasos, tempos de espera absurdos, superlotação, falta de integração e veículos velhos e poluentes são alguns dos problemas cotidianos de qualquer cidade brasileira, especialmente nos bairros mais afastados dos centros.

Esse cenário é resultado de um setor historicamente desregulado. Nas últimas décadas, a atuação do poder público foi limitada a apenas ‘regularizar’ um serviço precário, com contratos que não garantiram qualidade, não modificaram a estrutura de governança do setor, que permanece sob o controle das empresas, e mantiveram o custeio do serviço dependente, quase exclusivamente, da tarifa paga por quem usa o transporte.

Após a Constituição de 1988 e as leis que regulamentaram as licitações e as contratações no serviço público, os contratos de ônibus apenas formalizaram empresas que já operavam há décadas. Eles falharam em instituir um modelo de governança que garantisse um mínimo de frequência e pontualidade e um sistema de financiamento que promovesse tarifas acessíveis. A ideia de um sistema de mobilidade urbana, integrando a mobilidade ativa, é ainda mais insipiente e recente.

Um sistema sustentado apenas pelas tarifas depende da superlotação para ser rentável. Isso, aliado à falta de controle, faz com que o serviço priorize horários e áreas mais movimentadas, enquanto as regiões ‘menos rentáveis’ – via de regra as periferias – são negligenciadas. Este modelo impõe uma lógica meramente econômica, em detrimento de uma lógica de direito, que deveria assegurar universalidade e um atendimento mínimo em toda a cidade.

Esse modelo já vinha se esgotando há décadas: tarifas altas e um péssimo serviço resultam na perda de passageiros, o que reduz a arrecadação e agrava o ciclo de degradação do transporte. A pandemia de Covid-19, ao forçar a redução no número de passageiros, escancarou essa crise, exigindo mudanças estruturais no modelo. O Brasil, diante de um governo federal reacionário e avesso às políticas públicas, não agiu em um primeiro momento e diversas cidades passaram a subsidiar o transporte, mas com soluções pontuais que prolongaram a crise. Hoje, começam a surgir mudanças mais estruturais.

Por um lado, algumas boas soluções locais começam a despontar, embora em meio a um mar de medidas paliativas que mantêm o modelo atual. Por outro lado, o governo federal, agora sob liderança progressista, sinaliza com projetos que podem consolidar essas soluções e transformar profundamente o cenário do transporte coletivo no Brasil.

Além do mero subsídio, que apenas cobre os custos do serviço sem alterar regras ou critérios de qualidade, algumas cidades começaram a modificar essas regras. A primeira mudança é a remuneração das empresas com base no custo real do serviço necessário para atender bem toda a cidade. Isso garante disponibilidade e frequências estáveis, tornando o transporte um direito de fato. Cidades como Rio de Janeiro e Belo Horizonte estão começando a adotar esse modelo, ainda que de forma parcial ou tímida. São Paulo, Campinas e São José dos Campos sinalizam essa mudança, mas ainda não tiraram do papel.

A capital carioca também avança em novas formas de contratação, com a prefeitura adquirindo diretamente a frota de ônibus e deixando às empresas apenas a operação, em contratos mais curtos e simplificados. Cascavel (PR), São José dos Campos (SP) e a Bahia também caminham neste sentido.

Essas iniciativas locais são interessantes, mas ainda limitadas e incompletas, pois não abrangem toda a cidade ou não reformulam completamente o contrato e o modelo de gestão. No entanto, o governo federal está alinhado com essas inovações, iniciando ações que podem torná-las mais robustas e duradouras.

A iniciativa federal mais impactante deve ser o Programa de Renovação de Frota lançado dentro do PAC, elaborado com apoio de organizações da sociedade civil como o Idec e o ITDP. O projeto prevê o financiamento para que prefeituras adquiram frotas de ônibus elétricos ou menos poluentes, garantindo controle público sobre a frota. Dessa forma, o projeto avança em três aspectos essenciais para a qualidade do transporte público: oferece apoio financeiro às cidades, reduz a emissão de poluentes e promove uma gestão mais moderna, com impacto na qualidade do serviço.

Em paralelo, o Congresso discute novas legislações para o setor de transportes coletivos urbanos.

Na Câmara, tramita a Proposta de Emenda Constitucional 25 de 2023, de autoria da deputada Luíza Erundina (PSOL-SP), que institui o Sistema Único de Mobilidade Urbana, além de avançar na criação de fontes de receita e propor o estabelecimento futuro da Tarifa Zero em todo o País! Esta PEC aprovada exigiria uma profunda revisão legislativa no setor.

No Senado, o Marco Legal do Transporte Coletivo, elaborado pelo Ministério das Cidades, foi incluído em um projeto de lei, de número 3278/2021, que continha um texto antigo e mais simples sobre o tema. Apesar de algumas confusões internas na parte de financiamento e pouco aprofundamento na parte de participação popular, o texto é importante e avança em novas formas de financiamento, de planejamento e de governança no transporte coletivo.

Essas iniciativas federais são fundamentais, mas as prefeituras serão responsáveis pela implementação das medidas que impactarão a vida de milhões de brasileiros. Por isso, as eleições de 2024 serão cruciais. É essencial que as candidaturas progressistas compreendam essas mudanças no transporte urbano, um tema que afeta diretamente o cotidiano nas cidades.

O avanço do debate nas cidades é perceptível e animador. De Norte a Sul, mais candidaturas discutem com profundidade e conhecimento de causa os desafios e as soluções para o transporte coletivo. A tarifa zero é destaque nas propostas de Kleber Rosa, em Salvador, Candice Carvalho, em Aracaju, Maria do Rosário, em Porto Alegre, e Duarte Júnior, em São Luís. Já a necessidade de mudanças nos contratos e na governança para melhorar a qualidade do transporte está sempre no discurso de Natalia Bonavides, em Natal, Guilherme Boulos, em São Paulo, e Rogério Correia, em Belo Horizonte.

É urgente que esse avanço no debate eleitoral se reflita em novos governos municipais, comprometidos com a transformação da gestão e do financiamento do transporte coletivo. Somente assim, em conjunto com as propostas do governo federal, o Brasil poderá superar o estigma secular da má qualidade do transporte público, que marca o cotidiano da população. Essa mudança é vital para melhorar a qualidade de vida nas cidades e enfrentar a crise climática que já se impõe com força em nosso País.

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