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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.
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Dengue, espaço urbano e desigualdade: uma análise conjuntural sobre o problema da dengue no Brasil
As indagações negadas e a conservação do atraso estrutural nas cidades brasileiras


Há um processo de adoecimento em curso no Brasil de 2024 que pode ajudar a compreender o impacto da não realização de alterações estruturais no espaço urbano nas condições de vida das populações das nossas cidades: a dengue. Como se sabe, o fim do mundo chega primeiro nas periferias. A busca por um consenso sobre o conceito de desenvolvimento parece ter sido superada no Brasil. As respostas para o que seria desenvolvimento quase sempre centram-se no descompasso existente entre o crescimento econômico e a melhoria das condições de vida da nossa população.
Segundo o autor Luís A. Costa Pinto, ainda em 1964, essa dissonância pode ser compreendida pela ausência de transformações estruturais na sociedade. Assim, questões como a estrutura fundiária no meio rural e urbano no Brasil quase sempre se verão adiadas no seu enfrentamento.
Processos sociais transformadores e que movem estruturas na sociedade brasileira são todos marcados pela radicalidade dessas mudanças e não por alterações conjunturais. Portanto, a discussão sobre os efeitos de quaisquer política do Estado brasileiro recente evoca parte do que Celso Furtado chamou de mito do desenvolvimento. Segundo ele, é um mito que serviria ao desvio de questões essenciais como melhoria da qualidade de vida das pessoas, emancipação, ampliação das suas capacidades para, em lugar dessa concepção libertadora, lhe sobrepor a de que desenvolvimento seria sinônimo de crescimento econômico.
As consequências? Degradação da natureza e deterioração das condições de vida sobretudo dos povos de países periféricos. No Brasil, especialmente a partir dos anos 1950, o tema do desenvolvimento esteve colado às promessas de modernização e suas benesses, como aumento do espaço urbano, desruralização do País e industrialização. Franca promessa que, no ano de 1973, se viu parcialmente cumprida quando, em plena ditadura militar, o País experimentava taxas de crescimento de 10,3% ao mesmo tempo em que tinha aumento exponencial da fome, sobretudo no Nordeste e nas periferias das grandes cidades brasileiras.
Eis o descompasso: durante o chamado milagre econômico, ocupações desordenadas, fome e epidemias, como meningite, assolaram o País. Mas, como era de se esperar, o “apocalipse” chegou primeiro para os pobres. Segundo pesquisa realizada pela Fiocruz e publicada em 2018, entre 1970 e 1974 a ditadura ocultou uma epidemia de meningite em São Paulo. Um problema que só se tornou preocupação quando chegou ao centro das cidades, longe das periferias já atingidas.
Mais recentemente, em maio de 2022, 93 pessoas foram confirmadas mortas em Recife após chuvas torrenciais e deslizamento de barreiras em encostas que atingiram a cidade, deixando mais de 6 mil desabrigados. Esse é considerado segundo especialistas o maior desastre no século 21 até essa data.
Em 1975 – quando Recife esteve submerso e tinha 80% do território habitado em área alagada – houve algo parecido: 47 anos depois, apesar de toda uma legislação urbanística moderna, profissionais bem formados e toda tecnologia moderna, 1975 se viu superado quando Recife teve serviços paralisados e metade da cidade ficou sem energia.
Nesse ponto é preciso ressaltar duas questões.
Primeiro, as causas do “Apocalipse” – não o da narrativa cristã, mas o “hollywoodiano” – cooperam para impregnar na narrativa comum de que o fim do mundo vem por causas naturais. Porém, se esquece essa narrativa de que o fim do mundo já chegou para algumas pessoas. Basta uma conversa com sobreviventes dessas tragédias para confirmar que para parte delas o “mundo já se acabou.”
Arbovirose urbana no Brasil, dados recentes
Segundo dados do Ministério da Saúde, foram constatados quase 6 milhões de casos de dengue no Brasil, tendo sido confirmados também 3.780 óbitos até a metade do mês de junho, ainda restando a investigação de 2.923 óbitos pela doença. Até a data da divulgação desses dados, com um coeficiente de incidência da dengue atingido 2884,3 casos para cada grupo de 100.000 habitantes.
Se feita a distribuição desses números segundo as unidades da federação, tem-se o Distrito Federal em primeiro lugar no ranking de incidência, seguido por Minas Gerais, Paraná, Santa Catarina e Goiás. Se olharmos de outro ponto de vista, o estado de São Paulo tem a liderança dos número absolutos de casos prováveis: 1.757.630.
Para compreender melhor o impacto e a perversidade desses dados, é preciso compará-los com os do boletim epidemiológico divulgado pela Secretaria de Vigilância Sanitária, tomando como referência o ano de 2022. O Brasil teve naquela data cerca de 1,4 milhão de casos prováveis, um número menor que o registrado no estado de São Paulo antes de chegarmos à metade do ano atual.
A região que liderou o número de casos naquele ano nos incidentes por 100.000 habitantes foi a centro-oeste, com 1.544,2 casos, seguida pelas regiões Sul, Sudeste, Nordeste e Norte em último lugar.
Desse ponto em diante alguns questionamentos já são passíveis de elaboração. Há muitos outros dados, mas consideremos a princípio esses preliminares. Um primeiro questionamento refere-se nesse sentido a por que os estados do Sul e Sudeste, ao contrário do que espera o senso comum douto, lideram os números de casos prováveis e incidência por 100.000 habitantes em 2024?
Logicamente, os que resistem à realização desse questionamento já possuem dentro de si a resposta que consideram acertada. A da elevada densidade demográfica, baixa cobertura vegetal das cidades, etc. Sim, são variáveis explicativas válidas, mas não esgotam as possibilidade de reflexão que podem dessa constatação advirem.
Uma delas consiste exatamente na urgente necessidade de relativização dos ganhos das taxas de urbanização e sua pretensa noção de que desenvolvimento é asfalto. A pauta do direito à cidade obedece a um script legítimo. Acesso e universalização são termos que sintetizam parte considerável do seu significado. Não a esgotam, porém. O direito à cidade, tomado em sua perspectiva mais ampla e mais feliz, incluiria assim o direito à educação, à segurança pública, alimentar, habitação, mobilidade , saúde etc. Há muitas outras, mas, para efeitos de economia de nosso tempo de leitura, nos centremos na última, a saúde.
Condições estruturais negadas no enfrentamento
As condições estruturais da cidade é que nos interessam aqui, pois dessas é que o Estado brasileiro, caso optasse por uma agenda de fato “saneadora”, deveria se ocupar quando decidisse enfrentar a questão da saúde.
Observemos que o que pode se construir como conceito de igualdade, desenvolvimento e crescimento sustentável aqui é uma abordagem estruturalista e não conjuntural. O que isso quer dizer? Quer dizer que as grandes questões que de fato modificariam os quadros de desigualdade no País deveriam optar por mudanças estruturais, não por remediações eleitoreiras, tanto em nível municipal como federal.
Por isso mesmo é que alguns ainda se chocam com a constatação de que a “miserável” região Nordeste não lidera os casos de dengue, mas sim as regiões Sul e Sudeste. Longe de uma discussão regionalista, o que pode esconder esse incômodo é exatamente a concepção que formou os quadros de intelectuais e mesmo a classe política brasileira. Qual é? A de que desenvolvimento é sinônimo de crescimento econômico e inchaço urbano.
Por um novo paradigma de desenvolvimento e desigualdade
Não há por que desmerecer dados de crescimento do Produto Interno Bruto, industrialização e consumo evidentemente. Porém, há de sempre lançar-se questionamentos sobre a socialização desses ganhos e de como isso se reflete na alteração das condições estruturais que tornam ou não favoráveis processos de adoecimento, tal qual o de doenças tropicais como a dengue.
Há uma noção equivocada de que as cidades que não investem na expansão de construções como casas, indústrias e outras estruturas de concreto, perpetuam a desigualdade e o subdesenvolvimento. Essa visão, presente até mesmo no meio acadêmico, influencia a formulação de políticas públicas inadequadas.
O que seria desenvolvimento? O que reflete por fim a redução de um cenário de desigualdade em uma região? O que pode nos dizer que uma cidade de fato é um direito exercido por todos e todas? Há muitas respostas, quase sempre ignoradas pelo Estado brasileiro, independente de governos que passam. Uma delas é a que se remete à dimensão da saúde.
Nesse sentido, os indicadores de saúde de uma cidade são fundamentais, pois além de permitir o monitoramento das condições de vida dos indivíduos, denunciam, se bem observados, os “vácuos” estruturais deixados por seus governos.
A literatura dedicada ao tema das arboviroses urbanas, como a dengue, lista algumas características favorecedoras da ambiência de proliferação do mosquito transmissor.
São elas: as variáveis de clima, coleta e descarte inadequado de resíduos, demandas não supridas de água e esgoto, alta densidade populacional, ocupação desordenada e baixa cobertura vegetal surgem entre as principais.
O que importa agora, na busca modesta até aqui percorrida é, correlacionar esses fatores estruturais ao modo como o aedes aegypti se propaga nas cidades e regiões brasileiras.
Fornecimento de água e coleta de esgoto
A região Centro-Oeste, que abriga 16.289.538 habitantes, possui cerca de 38,2% desses sem coleta de esgoto adequado e 11% deles sem acesso a água potável, segundo dados do Painel do Saneamento Brasil de 2024. A região Sul, com seus 29.937.706 habitantes, ainda possui 50,4% desses sem acesso à rede de coleta de esgoto e 9,3% sem acesso a água. A região Sudeste detém 9% de seus 54.658.515 habitantes sem acesso a água e 19% sem acesso à coleta de esgoto.
Obviamente, as regiões com maior precariedade nesses indicadores seguem sendo, lamentável e perversamente, as regiões Norte e Nordeste. A região Norte, com seus 17.354.884 habitantes, possui 37,6% desses sem acesso à água potável e 85,7% sem coleta de esgoto adequado. A região Nordeste e seus 54.658.515 habitantes tem 24,4% desses sem acesso à água e 69,1% sem coleta de esgoto.
Ocupações em áreas de risco
Outra variável importante e explicativa para as arboviroses urbanas é a que se refere às regiões com ocupação em mapeadas áreas de risco. No Brasil, notadamente entre 1950 e 1980, sabe-se do aumento das ocupações em loteamento periféricos (fenômeno ainda observado em 2024), ilegais e descumpridores de normas de ocupação.
Segundo dados de 2020, o País possuía cerca de 5 milhões de moradias irregulares, o que correspondia à época a 7,8% das 65,5 milhões existentes. O maior percentual concentrando-se na região Norte (7,8% do seu total) e o maior volume na região Sudeste, com 23,2 milhões de moradias irregulares.
Em 31 de dezembro de 2023, segundo números do MapBiomas, a urbanização em áreas de risco triplicou entre os anos de 1985 e 2022, chegando a 123 mil hectares. Ou seja, atualmente tem-se no Brasil 3% da sua área urbana total considerada classificada em situação de risco. Essa área é maior exatamente nas favelas dos grandes centros urbanos do País.
Ainda que a Lei 6.766 de 1979 proíba a ocupação e o loteamento em áreas com declividade superior a 30%, entre os anos de 1985 e 2022 esse tipo aumentou cerca de 5,2 vezes.
Densidade populacional urbana e cobertura vegetal
Outra determinação epidemiológica refere-se à densidade populacional. Segundo dados do IBGE de 2022, o País tinha 23,8 habitantes por quilometro quadrado. A região Sudeste, por motivos já amplamente conhecidos, como a intensa industrialização alvo das históricas migrações intra e inter regional, possuía naquele ano 91,8 habitantes por quilômetro quadrado.
Esses dados, quando relacionados ao número de favelas, incluindo aqui o total de áreas urbanas com ocupação desordenada, fornece algumas pistas para explicitar o motivo para a maior incidência de dengue nas regiões Sul e Sudeste em anos recentes.
Quase 50% do total de favelas e assentamentos irregulares no País concentram-se precisamente nas regiões metropolitanas de Rio, São Paulo e Belém. Outra indicação que, somada às anteriores, poderia tornar mais evidentes as causas da desigual distribuição dos casos prováveis de dengue no Brasil é a referente à cobertura vegetal nas cidades. Segundo dados de 2018, apenas 7% (400 municípios) das cidades brasileiras detêm 40% da cobertura vegetal existente dentro do universo de mais de 5.000 municípios.
As evidências da vacina polivalente negada: a doença tem determinação social
Portanto, ainda que seja negada pelo mainstream da saúde no Brasil, a combinação entre fatores biológicos e sociais explicitam o alvo prioritário das ações do Estado no combate à dengue. Fora dessa perspectiva, o que resta ao Estado brasileiro é buscar por vacinas quando, de fato, a raiz da questão é predominantemente sócio-urbana.
O transmissor da dengue é diurno, considerado um vetor urbano e de fácil convivência com os seres humanos. Aliando-se essas características ao modo como as cidades são administradas, não há por que se espantar com o aumento do número de casos.
Isso evidencia que a concepção de desenvolvimento e desigualdade que predomina no nível dos formuladores de políticas públicas insiste em não romper com o seu viés economicista. Insiste-se na ideia de uma modernidade que adviria com a o crescimento desordenado das cidades e no aumento do poder de consumo conspícuo de seus habitantes.
Tais fatos também demonstram que a agenda de governo dedicada às questões urbanas em escala nacional, ou mesmo regional, precisa abandonar a ideia de que a modernidade capitalista é sinônimo de desenvolvimento, adotando por meta a melhoria das condições de vida das populações do meio rural e urbano e não optando pela dualidade entre ambas.
A dicotomia urbano-rural segue ditando agendas de politicas e de construção das representações sociais mesmo na academia. Opta-se por um modelo de desenvolvimento centrado na oposição rural-urbano, que ousa defender a ideia de que o problema da cidade é a migração rural em direção aos centros de dinamismo econômico, e não as condições estruturais que desenham a cidade.
A agenda negada à saúde é a negada ao urbano
Questionar que tipo de agenda está em andamento no Brasil é uma das principais tarefas da esquerda e de progressistas. Isso tem se tornado claro à medida em que outros processos políticos e sociais ainda parecem refletir o conjunto de escolhas tomadas pela sociedade brasileira, desde 2013, e a via preferida adotada, o neodesenvolvimentismo via aumento do poder de consumo da população.
Ao lado desse questionamento, outros mais focados em temas específicos, como a saúde, são capazes de abrir possibilidades transformadoras ao indagar, por exemplo, qual a relação existente entre as desigualdades regionais, o atual estágio de desenvolvimento urbano e os fatores epidemiológicos favorecedores da proliferação de uma doença urbana tipicamente característica de países atrasados?
Para tanto, abandonar concepções hegemônicas sobre desigualdade e desenvolvimento urbanos parece ser a real vacina que segue sendo negada pelo Estado brasileiro. Ao fim, a pergunta de fato segue sendo: a quem servem o crescimento das cidades brasileiras e a manutenção das condições estruturais que perpetuam o descompasso entre modernidade e melhores condições vida e saúde dos mais de 200 milhões de pessoas?
A agenda urbana, caso parta de questões como a regularização fundiária, o nó da terra e o direito à cidade, terá constituído seus alvos principais no enfrentamento das forças do atraso. Desse modo, não apenas conterá a proliferação de doenças como a dengue, mas também iniciará a demolição das condições estruturais históricas da desigualdade no Brasil.
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