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Cidades podem e devem se preparar para o novo quadro climático

Nos últimos 100 anos, o investimento público em desenvolvimento urbano foi concentrado nos bairros mais centrais

Créditos: PLAUCHEUR / AFP
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Desde os anos 1990, os cientistas têm alertado que o aquecimento da Terra tem produzido mudanças significativas no clima, especialmente nos polos, e aumentado os níveis dos mares, da intensidade das marés, das chuvas intensas e também das secas prolongadas devido à queima generalizada de carvão e petróleo, associada à destruição das florestas. De uma forma geral, estávamos vivendo um processo de mudanças climáticas no planeta em que os eventos extremos seriam potencializados e que os territórios estariam expostos a uma variedade de antigos e novos riscos.

O que era previsão em 1990 tornou-se realidade 30 anos depois. O aumento da temperatura média global – uma das pautas das discussões sobre mudanças climáticas –, além de elevar a temperatura nas cidades, pode tornar os eventos climáticos e suas consequências mais extremas com verões mais quentes, períodos de seca e chuvas mais concentradas e intensas. Os eventos extremos e suas consequências têm refletido em intensos impactos negativos à sociedade, sobretudo às comunidades mais vulneráveis, com ocorrências de alagamentos, inundações, movimentos de massa e secas prolongadas.

No Brasil, foram registradas chuvas intensas e prolongadas no sul da Bahia no final de dezembro de 2021, inundações e deslizamentos de terra em Minas Gerais e São Paulo em janeiro de 2022, chuvas torrenciais – mais uma vez – em Petrópolis em fevereiro e março, e destruição e mortes em Angra dos Reis e Paraty em março de 2022. Este crítico quadro de mortes, perdas e prejuízos socioambientais aponta para a necessidade do fortalecimento da gestão de riscos de desastres, tanto em âmbito local, quanto estadual e federal, principalmente em relação às capacidades institucionais de dar respostas à população vulnerável. 

A emergência climática bate à porta. Pensando nisso e com o objetivo de refletir sobre o que deve ser feito para proteger nossa população nos próximos anos, CartaCapital e BrCidades promoveram um ciclo de debates com o intuito de discutir um projeto de desenvolvimento que inclua formulações sólidas sobre um modelo atento às contradições e oportunidades abertas pelas cidades do século XXI.  A conversa contou com cientistas, professores universitários, técnicos municipais e lideranças comunitárias no âmbito da preparação da Conferência Popular pelo Direito à Cidade que será realizada na cidade de São Paulo, nos dias 3, 4 e 5 de junho. A conferência é uma iniciativa de 450 entidades, movimentos e coletivos populares, com vistas à criação de uma plataforma de lutas pelo direito à cidade.

Em todo o Brasil, estão sendo realizadas reuniões (230 cadastradas até o presente momento) sobre os mais diferentes temas que afetam a vida do povo nas nossas cidades: meio ambiente, racismo, segurança pública, violência de gênero, mobilidade, democracia participativa, moradia. Estão sendo levantadas propostas que serão analisadas por 500 delegados de organizações populares durante a Conferência e servirão de base para a construção de uma plataforma que aponte para a unificação das lutas populares pelo direito à cidade.

Ainda com relação aos desastres socioambientais, a conclusão a que se chegou é que as cidades brasileiras estão completamente despreparadas para o novo quadro climático. E a alteração desta situação exige três ações simultâneas:

  1. Priorizar os investimentos públicos nas periferias;
  2. Ampliar a capacidade de previsão meteorológica, monitoramento climático e alerta;
  3. Modificar a concepção do sistema de proteção e defesa civil, investindo na criação de núcleos comunitários com capacidade e autonomia de ação;

Nos últimos 100 anos, o investimento público em desenvolvimento urbano foi concentrado nos bairros mais centrais, direcionado pelo interesse do capital imobiliário, enquanto que os bairros populares foram formados por meio de ocupações, loteamentos irregulares ou conjuntos habitacionais que apresentam como característica a precariedade, ou ausência de infraestrutura e equipamentos sociais urbanos. São bairros onde a moradia precária e autoconstruída chegou primeiro; água, esgoto, energia, asfalto, ônibus, escola e posto de saúde chegaram muito depois, fruto das lutas populares; e o tratamento dos esgotos, os parques públicos, o controle de inundações, o sistema de drenagem e o manejo de águas pluviais, os muros de arrimo, a limpeza das ruas, bueiros, córregos e morros chegaram de forma incipiente, ineficaz ou nem sequer chegaram. Por isso, do ponto de vista ambiental, as periferias são as áreas frágeis, feridas, machucadas da cidade e que precisam ser tratadas prioritariamente para que as consequências não afetem toda a cidade. 

Propõe-se que nos próximos 10 anos a maior parte dos recursos do orçamento municipal para infraestrutura urbana seja aplicada nas periferias. As leis orçamentárias, o Plano Plurianual (PPA), a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e a Lei Orçamentária Anual (LOA) devem indicar claramente os bairros em que o investimento será feito. Hoje, as leis orçamentárias não estabelecem os locais onde o investimento será aplicado, de modo que essa informação fica escondida do público. Além de identificar os locais na lei, deve-se estabelecer que o recurso destinado a cada bairro seja definido de acordo com um indicador de vulnerabilidade. Quanto mais vulnerável for o bairro, mais recurso por habitante deve receber. Dessa forma, propõe-se um pacto para que, nos próximos 10 anos, as prefeituras deixem de priorizar ações concentradas nos bairros privilegiados, como o alargamento de avenidas e a troca do pavimento das praças, e destine o recurso para melhoria das infraestruturas e da proteção e defesa civil nas periferias.

Faz parte dessa proposta que os municípios não sejam abandonados à própria sorte. É necessário o apoio dos governos estaduais e do governo federal com a criação de um grande programa público de investimento em infraestrutura e equipamentos sociais nas periferias. Para ser eficiente, o programa deve prever que as intervenções sejam feitas a partir do plano municipal de redução de riscos e sua ordem de prioridade seja estabelecida por um comitê gestor em que haja representantes dos moradores das áreas de risco, pois são essas pessoas que conhecem as fragilidades e problemas do seu bairro. Isso exige readequação dos métodos de mapeamento de riscos para incluir os moradores no processo.

A segunda proposta refere-se à previsão da ocorrência dos desastres. O governo federal deve investir no Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) e aperfeiçoar o atual sistema de monitoramento em que uma central dotada de grande capacidade de processamento de dados recebe informações em tempo real de imagens de satélites, radares meteorológicos e redes de estações fluviométricas e pluviométricas localizadas nas áreas de risco; realiza a previsão meteorológica específica para cada área de risco; mede quanto está chovendo em cada momento e atualiza constantemente a previsão meteorológica; estabelece níveis de alerta; e fornece essa informação em tempo real para todas as cidades monitoradas.

Finalmente, para que todas essas informações e dados sejam úteis, eles precisam chegar até as autoridades das cidades e, principalmente, às populações em risco, o que depende da existência de um sistema de proteção e defesa civil presente, estruturado e preparado para receber os alertas e operar um plano de emergência que retire a população dos locais críticos antes da ocorrência do desastre.

Isso cabe às defesas civis municipais, mas muitas ainda precisam inverter a lógica atual, em que age-se principalmente na fiscalização da ocupação do solo, sem participação constante dos moradores. É necessário que elas se transformem em agentes de apoio à formação e operação de núcleos comunitários autônomos de defesa civil formados, basicamente, por representantes eleitos dos moradores das áreas de risco.

Esses núcleos devem atuar no mapeamento participativo de risco, cuidar dos pluviômetros, definir e fiscalizar pequenas obras de limpeza, drenagem e reforço de moradias, participar da elaboração do plano de retirada e refúgio e das medidas de proteção das residências evacuadas, participar da gestão dos refúgios e estabelecer medidas de recuperação após os desastres. Cabe à administração municipal fornecer as condições materiais, técnicas e operacionais para que os núcleos comunitários possam desempenhar esse papel de protagonista na autodefesa da população. 

Defende-se que a gestão de riscos de desastres nos âmbitos federal, estadual e municipal devam reconhecer que o caminho para o enfrentamento está na integração da gestão de riscos ao planejamento territorial e buscar fortalecer as relações intersetoriais, interinstitucionais, intermunicipais e entre os entes federativos. Se questões de riscos, vulnerabilidades, desastres, emergências climáticas, moradia, educação, saúde e segurança estão todas envolvidas, não dá mais para concentrar a responsabilidade nas mãos apenas das defesas civis municipais e estaduais. É necessário colocar a pauta dos riscos de desastres na centralidade das políticas públicas e que ela seja contemplada pelas bandeiras da justiça social e da justiça ambiental. 

Em resumo, as cidades podem e devem se preparar para o novo quadro climático, para porém para tanto é necessário direcionar os investimentos para as periferias. Precisamos aplicar o conhecimento tecnológico atual em um sistema moderno de previsão meteorológica, monitoramento climático, alerta e informação pública. Por fim, devemos investir na organização dos próprios moradores das áreas de risco de maneira a desencadear e fortalecer o protagonismo popular. 

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