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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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Cidades inteligentes buscam a radicalidade da igualdade

‘A desigualdade não é algo de agora, nossas cidades já se formaram sob a marca da exclusão’

São Paulo. Foto: iStock
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“Acredito nessas minorias capazes de compreender a Ação, Justiça e Paz e de adotá-la como campo de estudo e de atuação. Chamo-as Minorias Abraâmicas porque, como Abraão,
esperamos contra toda esperança”
Dom Helder Câmara

As urnas de 2020 colocaram enormes desafios para os novos governos e parlamentos municipais. Esses desafios foram agravados com a pandemia do novo coronavírus e todas as suas consequências, principalmente as sequelas com as perdas de milhares de vidas, de empregos e de renda.

Neste cenário, prefeitas/os, vereadoras/os, encontraram cidades profundamente desiguais e, independente da sua posição ideológica ou partidária, o tema da desigualdade terá vários rostos e vozes demandando políticas públicas voltadas para a redução das desigualdades e por serviços públicos que priorizem a universalidade dos direitos e a qualidade necessária na execução dessas políticas.

Claro que a desigualdade não é algo de agora, nossas cidades já se formaram sob a marca da exclusão. A história do Brasil, é uma história marcada profundamente pelas desigualdades sociais e regionais, portanto, a principal tarefa a ser enfrentada é a luta pela igualdade, no seu sentido mais pleno e generoso, essa luta passa obrigatoriamente pela atuação da política urbana. Uma política urbana que conheça a totalidade da cidade, as suas enormes desigualdades e os desafios de promover o debate econômico e orçamentário em vista de ofertar à cidade um planejamento urbano participativo e sustentável. Se faz necessário refletir os vários campos da desigualdade e a formação das nossas cidades.

Igualdade para promover a diversidade

A desigualdade não é apenas socioeconômica e regional, ela tem rostos, nomes, culturas, gênero, raça e etnias. O Brasil sofre todas as consequências de uma cultura profundamente machista, racista, patrimonialista e clientelista, por isso, não basta superar os abismos socioeconômicos, é necessário superarmos a cultura autoritária e de superioridade e transformá-las numa cultura democrática e de promoção da igualdade.

Uma igualdade que só é possível no total reconhecimento das diferenças, das dívidas históricas, sobretudo, das consequências de um regime escravocrata de mais de 300 anos e uma abolição que não foi justa e nem reparou os ex-escravizados com alguma possibilidade de recomeçarem as suas vidas.

Esses ex-escravizados foram abandonados à própria sorte, sem trabalho e sem um teto para morar e esta é a origem de muitas das favelas e periferias das nossas cidades, por isso é possível dizer que o território urbano é um território reprodutor de exclusão e segregação.

A luta pela igualdade é uma luta antirracista e é na cidade que nossas contradições se expressam, sendo assim, a política urbana que se comprometa com a busca da igualdade, ela só pode ser plena neste objetivo se for antirracista.

Outra face cruel da nossa desigualdade é a brutal distância entre homens e mulheres. Estamos longe da igualdade de gênero, apesar de todos os avanços que as mulheres conquistaram ao longo das suas lutas e articulações dos últimos tempos.

Na eleição de 2020, tivemos um aumento de mulheres e mulheres negras eleitas, um aumento extremamente significativo e fruto das suas lutas, porém, ainda longe da transformação urgente e necessária.

No campo da promoção da cultura democrática e da igualdade, há de se reconhecer um misto de mudanças desde a esfera pessoal, das nossas atitudes no cotidiano, às mudanças conjunturais e coletivas até as mudanças estruturais e sistêmicas.

Entendo que essas mudanças devem ocorrer de forma a uma impulsionar a outra. Muitas vezes na caminhada de um militante, não se percebe o quanto que o discurso e a vontade de mudança não correspondem à sua prática, por isso, o exercício da autocrítica deve ser constante para que a força do exemplo possa impactar as mudanças tão necessárias.

Aqui, quero colocar uma situação que vivi e faz com que eu encarare a mim mesmo: numa conversa com duas amigas e um amigo, acabei por fazer um comentário profundamente machista, e na hora elas me rebateram. Senti-me acuado, logo e de forma agressiva, apelei para a minha história de militante e democrata para rebater os argumentos que me apontavam.

No entanto, sem perceber, só reforcei o machismo que existe e achava que estava longe de mim. No desenrolar da conversa e com a ajuda delas, deparei-me com a realidade que me mostrava o quanto estava errado e o quanto de autocrítica deveria fazer para poder assumir um caminho interior de mudança.

Agradeço profundamente a elas por me fazer entender que é preciso desconstruir o machismo todos os dias, a começar por mim mesmo e minhas ações do cotidiano. Este exemplo que acabo de relatar só me fez acreditar ainda mais quão é necessário a articulação dos campos das mudanças, seja pessoal, conjuntural, ou das estruturas.

Outro protagonismo que avançou nestas eleições foi o da comunidade LGBTQI+. Foram vários mandatos conquistados nas urnas, outra demanda por cidades da igualdade, da diversidade, cidades que se reconhecem como plurais, por isso o esforço das políticas públicas devem ser um esforço do mais profundo compromisso com o diálogo e com as representatividades existentes.

Cidades acessíveis e que garantam o direito de todas as pessoas, das pessoas com deficiência física, por exemplo, onde em grande medida a infraestrutura e o transporte urbano na maioria das vezes estão de costas para estas pessoas, tornando um direito a uma cidade acessível sendo violado. É preciso insistir que as políticas públicas representem o rosto plural da cidade.

É urgente promover soluções aos desafios das mudanças climáticas e ambientais. Entender que este tema é transversal e que requer o esforço de toda sociedade e dos governos para ofertarem uma política urbana conectada com esta agenda e com as transformações de curto e longo prazo.

A luta pela igualdade é a luta pela democracia, é a luta por uma nova economia

A luta pela igualdade é a luta pela plena dignidade humana. Pessoas que, independentemente do seu gênero, raça, etnia, religião, classe social, orientação sexual, são pessoas plenas de dignidade. Cidadão e cidadãs constroem a cidade da sua maneira, pagam seus impostos, querem ser ouvidas e terem as suas legítimas demandas atendidas. Por isso, a igualdade é uma luta da diversidade, algo que só será possível construindo uma sociedade democrática e inclusiva. Para isto, a economia e os arranjos econômicos devem levar ao centro a busca da igualdade. Não há crescimento econômico que seja justo, se a sociedade for profundamente desigual e ambientalmente insustentável.

Por fim, a luta pela igualdade é a luta por mudanças estruturais, por uma nova sociedade que compreenda o seu desenvolvimento econômico como uma casa comum, uma casa onde todos e todas caibam com as suas diferenças, talentos e dons, mas, onde ninguém fique para trás. Uma casa ecologicamente sustentável e economicamente justa.

Cidades inteligentes são, antes de mais nada, cidades que buscam a radicalidade da igualdade, que se realizam em plena diversidade e que colocam toda a inovação e suas políticas públicas na promoção da qualidade de vida para todas e todos. Que a pandemia e a brutal desigualdade nos façam enxergar a principal tarefa a ser enfrentada pelos novos governos e parlamentos municipais e a pressão sobre os governos estaduais e da união sobre os rumos e financiamentos das políticas urbanas.

Pontuei aqui algumas questões do vasto campo das desigualdades socioeconômicas e regionais e da necessidade do caminho de uma cultura democrática e da igualdade. Na lembrança dos 100 anos de Celso Furtado e Florestan Fernandes, que o espírito deles, a militância e suas obras nos ajudem a entender a atual realidade e as possíveis soluções.

Caminhemos!

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