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Capital e patriarcado: como o modelo do agronegócio impacta a vida das mulheres trabalhadoras rurais
As grandes corporações mantêm formas arcaicas de espoliação no campo, intensificando o ritmo de trabalho para ampliar a produtividade e reduzir custos
Desde o período colonial, o campo brasileiro tem sido marcado por contradições que atravessam seu desenvolvimento político, econômico, social e ambiental. A estrutura do latifúndio e os grandes projetos agro-exportadores consolidaram um modelo baseado na monocultura, no pacote tecnológico agroindustrial, na destruição ambiental, na apropriação privada dos bens comuns e na superexploração do trabalho. A pequena agricultura, responsável pela produção de alimentos, tem sofrido os revezes e os impactos causados pelo agronegócio na sua busca desenfreada por lucros e expansão.
Nesse contexto, a realidade das mulheres trabalhadoras rurais — camponesas, indígenas, quilombolas e extrativistas — é ainda mais cruel. Elas sustentam o trabalho pesado nas grandes lavouras ou no roçado, nas tarefas domésticas e no cuidado com a família, mas permanecem invisíveis social, política e economicamente, submetidas a um sistema que combina exploração de classe e opressão, como o racismo, a dominação étnica e a dominação patriarcal. Carregam em sua história as marcas da violência do capital, do Estado e do patriarcado, desde as memórias ancestrais das mulheres indígenas e negras escravizadas, imigrantes pobres, até as trabalhadoras contemporâneas.
O Brasil segue sendo dirigido por uma classe dominante agrária, industrial e financeira associada ao imperialismo, que impõe as condições de dependência ao projeto agroexportador, subordinado à lógica do capital financeiro. Na Era da agricultura 4.0, da revolução científica e tecnológica, a forma de dominação silencia as mulheres trabalhadoras do campo. Desde as plantations escravistas até a agroindústria moderna, elas sustentam a reprodução da vida e da força de trabalho do proletariado rural e do campesinato.
No caso do campesinato, as mulheres que produzem na agricultura familiar são também guardiãs da agrobiodiversidade, preservam sementes crioulas, florestas e águas, que são práticas essenciais à soberania alimentar. Em tempos de crise ambiental e avanço do agronegócio destrutivo, seu papel político torna-se estratégico: defender a terra, a biodiversidade e todas as formas de vida contra a lógica predatória do capital.
As grandes corporações monopolistas mantêm formas arcaicas de exploração e espoliação no campo, intensificando o ritmo de trabalho para ampliar a produtividade e reduzir custos. Jornadas extenuantes, ambientes insalubres e trabalho análogo à escravidão continuam sendo realidade, especialmente em lavouras do agro como de cana-de-açúcar, laranja, eucalipto e pecuária. Segundo a Comissão Pastoral da Terra (2023), mais de 1.400 pessoas foram resgatadas do trabalho escravo rural em um único ano, sendo as mulheres as mais vulneráveis.
Estas mulheres enfrentam jornadas de até 18 horas (entre a lavoura e o lar), baixos salários — frequentemente a metade do equivalente aos homens — e ausência de direitos trabalhistas básicos, como licença-maternidade, aposentadoria e acesso a crédito agrícola. A precarização e o trabalho intermitente intensificam a desigualdade, enquanto as violências física, simbólica e sexual se somam à exploração econômica.
O relato de uma trabalhadora nas lavouras de laranja em São Paulo, colhido por Maria Aparecida de Moraes Silva, em 2001, ilustra essa realidade: “A gente chega na fazenda e molha os pés no veneno pra poder entrar. A escada de ferro pesa, a sacola cheia de laranja pesa vinte e sete quilos. A gente carrega isso o dia inteirinho, no pescoço. Fica o corpo doendo, o cheiro de veneno grudado”.
Essa narrativa de uma trabalhadora migrante traduz o cotidiano de milhares de mulheres que sustentam, com o próprio corpo, a riqueza do agronegócio. Importante ressaltar que, no caso das mulheres indígenas, a situação é ainda mais grave, pois a ofensiva do capital sobre seus territórios promove um massacre étnico levado a cabo pelas grandes empresas do agronegócio na disputa pelos bens comuns.
A Carta Constitucional de 1988 não as reconheceu plenamente como trabalhadoras rurais, perpetuando sua invisibilidade e negando direitos básicos. A ausência de políticas públicas aprofunda a desigualdade, restringindo acesso à educação, crédito e previdência. Por exemplo, a negação histórica da escolarização feminina no campo limita a autonomia econômica, política, social e cultural, perpetuando o ciclo de exploração.
Além disso, o fardo da tripla jornada marca a vida dessas mulheres: trabalham nas lavouras, mantêm o lar e além disso também participam da vida comunitária e política, sem remuneração. No aspecto cultural, a ausência de políticas públicas de lazer e mobilidade reforça a clausura social e a divisão sexual do espaço: os homens frequentam o futebol e o boteco, enquanto as mulheres permanecem presas à rotina doméstica.
Outro elemento fortemente enraizado na relação familiar que reforça a ideologia patriarcal é o “mito da propriedade masculina”: o homem é o proprietário legal e chefe de família, enquanto a mulher é legitimada como dependente, mesmo sendo simbolicamente e efetivamente o motor produtivo das propriedades. Essa estrutura mantém o controle masculino sobre a terra e o poder formal de decisão, tornando as mulheres vulneráveis em casos de separação e herança.
A violência física e o feminicídio agravam a realidade, diante da falta de proteção estatal e da distância dos serviços públicos. O isolamento geográfico, a impunidade e o medo tornam as denúncias quase impossíveis.
Apesar da opressão, a história das mulheres do campo é também uma história de resistência e protagonismo. Movimentos populares e sindicais do campo, como o Movimento de Mulheres Camponesas, as quebradeiras de coco babaçu, as mulheres indígenas, quilombolas, dos sindicatos rurais, as mulheres do MST, entre outras, constroem, há décadas, lutas coletivas contra o capital e o patriarcado.
Essas mulheres expressam sua radicalidade quando denunciam o poder das corporações transnacionais de sementes e agrotóxicos, a financeirização da terra e a mercantilização da natureza. Ao ocupar terras improdutivas e criar escolas e cooperativas agroecológicas, afirmam que a terra deve servir à vida, não ao lucro.
Produzem nos quintais e nas pequenas propriedades a maior parte dos alimentos que chegam à mesa dos brasileiros — feijão, arroz, mandioca, hortaliças, leite, mel, frutas etc. — enquanto o agronegócio exporta commodities. Essa é a contradição central: quem alimenta o povo é quem menos tem acesso à terra e aos meios de produção.
Graças à sua luta, alguns avanços foram conquistados, como por exemplo o reconhecimento das mulheres assentadas como titulares principais do Contrato de Concessão de Uso (CCU), garantindo-lhes assim, autonomia e proteção jurídica. Na prática, as trabalhadoras rurais constroem uma economia política com princípios de partilha e da solidariedade, contrapondo-se à lógica destrutiva do capital.
A luta das mulheres campesinas, organizadas nos movimentos populares desencadeia uma luta de classes com perspectiva feminista, anticapitalista, antirracista, antifascista e anti-imperialista.
Referências como Margarida Alves, líder sindical paraibana que organizou trabalhadoras e trabalhadores rurais no Sindicato de Alagoa Grande, e Elizabete Teixeira, mulher centenária das Ligas Camponesas “marcada para viver”, simbolizam a luta histórica pela reforma agrária no Brasil.
O legado dessas lutadoras inspira milhares de mulheres que se organizam e lutam pela emancipação humana e pela transformação da realidade do meio rural brasileiro, tendo a reforma agrária como um dos pilares centrais para o desenvolvimento e reconhecimento da mulher trabalhadora rural como protagonista das mudanças efetivas.
Suas mãos calejadas e rostos determinados fazem brotar o alimento e a esperança, carregam o sonho de um país em que terra, trabalho e dignidade sejam direitos universais plenos. Sua resistência cotidiana é um ato revolucionário contra o patriarcado e o capital — um grito de vida que insiste em ecoar.
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