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BRCidades: A importância da CDHU para minha constituição como defensor público

Governo de SP enviou à Alesp projeto para extinguir Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano

FOTO: Luis Blanco/ A2IMG FOTO: Luis Blanco/ A2IMG
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Por Allan Ramalho Ferreira

A promoção dos direitos humanos e a defesa integral e gratuita das pessoas necessitadas são missões constitucionais da Defensoria Pública.

A instituição é formada por defensoras e defensores públicos, agentes e servidores e servidoras (além de estagiários e estagiárias e trabalhadores e trabalhadoras terceirizados/as).

Cada profissional percorreu um caminho diferente até chegar à Defensoria Pública. Esses caminhos e histórias são preciosos.

Diante do cenário de atual de desmonte das políticas habitacionais inclusivas, decidi contar como duas instituições fundamentais, a Defensoria Pública e a Companhia de Desenvolvimento Habitacional de São Paulo (CDHU), se encontram na minha história pessoal. Ingressei na Defensoria Pública paulista em 2013. Porém, a minha constituição como defensor público começou muito antes e teve influência direta e fundamental das políticas habitacionais inclusivas, em especial da provisão de moradia popular desenvolvida pela CDHU.

Minha mãe, Maria Geny, veio da Paraíba para São Paulo no final da década de 1970, em busca de melhores oportunidades de emprego. Habilitada para o magistério por um curso técnico que completou ainda durante a adolescência, exerceu, por muitos anos, a profissão de professora de educação básica na rede pública pela atribuição de aulas remanescentes dos titulares de cargo.

Nesse período, destacou boa parte de seus rendimentos para o pagamento de aluguel residencial. Meu pai recebia um salário modesto como gráfico – ainda menor era seu salário formal, já que as horas extras sempre foram pagas “por fora”.

Meus pais não constituíam um núcleo familiar com estabilidade financeira e empregatícia para aderir a um financiamento oferecido pelo mercado imobiliário – realidade compartilhada por grande parte da população brasileira, que encontram na ocupação informal ou nos excessivos alugueis as oportunidades para exercer, minimamente, o seu direito à moradia.

Capitaneados por minha mãe, conquistaram sua moradia pela adesão a um movimento de ocupação de um terreno abandonado. A luta resultou na construção, em regime cooperativo (COPROMO – Cooperativa Pró Moradia de Osasco), de autogestão e com assistência técnica de interesse social da Usina – CTAH, de unidade habitacional, situada no Jardim Piratininga, na cidade de Osasco.

Após extensas jornadas de trabalho, minha mãe dedicava seus finais de semana ao assentamento de tijolos, em regime de mutirão, neste empreendimento que veio lhe proporcionar moradia adequada. Essa conquista não seria possível sem um quadro de políticas públicas inclusivas. A moradia popular foi financiada pela CDHU. O carnê expedido pela companhia foi pago por doze anos, sem qualquer atraso. O valor mensal era substancialmente menor do que os valores antes pagos em aluguéis. Esse dinheiro passou a ter outros destinos.

Desde a quarta série do ensino fundamental passei a estudar em uma escola particular do bairro, onde completei o ciclo de formação (ensino básico e médio-profissionalizante). Minha mãe cursou faculdade, um pouco antes de mim. Foi aprovada em concursos públicos para o magistério estadual. Guardado o giz, cuida de seu marido cadeirante e de sua filha com síndrome de down em outra casa, já que o apartamento que ajudou a construir se situa no quarto andar de um prédio sem elevadores.

As políticas habitacionais inclusivas – provisão estatal de moradia popular, financiamento habitacional público, autogestão, construção colaborativa em regime de mutirão e assistência técnica de interesse social – foram determinantes para a ascensão social e profissional da minha família.

Com a implementação do direito à moradia, durante a minha infância, tive formação educacional de melhor qualidade. Isso certamente foi determinante para a obtenção do meu diploma de bacharelado em direito, o meu ingresso nos quadros da advocacia e, finalmente, a minha aprovação no concurso público de ingresso na carreira de defensor público. Também foi crucial para o meu interesse de atuar, na Defensoria Pública, na pauta da política pública habitacional e dos conflitos fundiários urbanos – atualmente sou um dos coordenadores do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo.

Vejo-me, agora, na difícil tarefa de defender a companhia habitacional que foi determinante para a minha constituição como sujeito e permitiu a realização do meu projeto profissional. Tramita projeto de lei de n.º 529/2020, encaminhado à Assembleia Legislativa pelo Governo, no sentido de sua extinção – a Defensoria Pública e o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico subscreveram uma substanciosa nota técnica sobre a inconstitucionalidade e inoportunidade política e social do projeto.

Durante a colaboração com a construção dessa nota técnica, pude rememorar a importância da companhia na minha história. Minha família foi uma das mais de 570.000 atendidas por programas desenvolvidos pela CDHU. Assim como 91,3% dos contratos ativos da companhia, minha família, quando contemplada, e durante boa parte do financiamento, auferia menos de três salários mínimos. Diante da falta de estabilidade financeira e empregatícia, meus pais jamais conseguiriam acesso uma moradia popular por um financiamento bancário nos termos de uma parceria público-privada ou outro programa similar.

A minha perspectiva, advirto, é da política de provisão de moradias, mas a companhia desenvolve outras importantes ações: programa de locação social, política estadual de reassentamento habitacional, regularização técnica e fundiária de intervenções de favelas e demais ações estratégicas da Política Estadual de Habitação.

Caso extinta, a CDHU deixará um vácuo institucional irreparável no quadro de políticas habitacionais no Estado de São Paulo. Milhares de famílias de baixa renda deixarão de ser atendidas, diante da inadequação e do desenho neoliberal e financeirizado das políticas habitacionais remanescentes – esse cenário será agravado pelas consequências econômicas da pandemia do Covid-19 sobre essa população.

Muitas crianças deixarão de acessar as oportunidades que tive, decorrentes da segurança possessória e da implementação do direito fundamental à moradia ainda no período de desenvolvimento biopsíquico.

Estamos diante do possível fim do ciclo de uma política pública que fez a diferença na vida de gerações de famílias. Que esse testemunho possa deixar um convite à reflexão e à oposição ao projeto legislativo apresentado pelo Governo do Estado no sentido da extinção da CDHU.

Allan Ramalho Ferreira é Mestre em Direito do Estado pela PUCSP, Defensor Público, Coordenador do Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Diretor de Articulação Social da APADEP, Associado ao IBDU e Colaborador do BR Cidades.

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