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As tragédias urbanas e as falácias do ‘mercado’

Uma visão sistêmica sobre o espaço urbano deve substituir o interesse privado, setorial, fragmentado, especulativo e rentista

A Barra do Sahy, em São Sebastião, após a tragédia no litoral norte paulista. Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Antes mesmo de completar dez dias de trabalho, o novo governo do Brasil foi alvo de vários tipos de ataques, com destaque para dois deles em particular. O primeiro deles foi a desastrosa tentativa de golpe contra os resultados das últimas eleições perpetrada no dia 8 de janeiro, algo que ganhou visibilidade inquestionável, tanto em escala nacional quanto internacional. O outro ataque evidente é menos espetacular, mas  talvez seja até mais danoso à democracia e à sociedade brasileira, pois tem como protagonista o chamado “mercado”, em sólida parceria com a mídia hegemônica: trata-se das criticas descabidas ao governo que começaram antes mesmo de sua posse.

Diferentemente do que fez em suas primeiras gestões, o atual presidente respondeu aos ataques do mercado criticando a maior taxa de juros do planeta e a “independência” do Banco Central (quarto poder independente no Brasil?). O governo Lula encontrou um orçamento elaborado pelo governo anterior que não contemplava seu projeto e os compromissos com os quais foi eleito, especialmente a inclusão dos setores populares nos gastos públicos. Para efetivar tal inclusão, preparou uma Proposta de Emenda ao Orçamento de 2023 que gerou imensa reação do chamado “mercado”. A “PEC da gastança”, ou “PEC do estouro”, são algumas das expressões usadas na imprensa para se referir ao projeto que saiu vencedor nas eleições. O mais surpreendente desses ataques se deu por meio de alguns títulos de várias matérias jornalísticas que deram a entender que o “mercado” se frustrou com o sucesso e o fortalecimento do governo Lula após o enfrentamento dos acontecimentos de 8 de janeiro. 

No dia 10/01, o jornal Folha de S.Paulo registrou na chamada da matéria de página interna: “Efeitos na economia de fortalecimento de petista preocupam investidores”. Outras duas chamadas de matérias jornalísticas no jornal, e na mesma página, registram: “Atos preocupam estrangeiros, mas menos que agenda econômica de Lula e “Defesa da democracia fortalece petista, e governo precisará se voltar ao centro, dizem economistas. Será exagero concluir que o personagem “mercado” não dá a menor importância para a democracia? Ou para a estabilidade das instituições e que não tem qualquer interesse em reduzir a fome e as agruras das populações mais empobrecidas? 

A questão do Saneamento Básico tem sido motivo particular desses ataques absolutamente prematuros. O “mercado” criticou medidas propostas pela equipe de transição do governo Lula que propôs mudanças na ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) e em portarias referentes ao Marco Regulatório do Saneamento aprovado em 2020. O jornal O Estado de S. Paulo estampa em sua primeira página do dia 15/12/22: “Equipe de Boulos sugere a Lula tirar saneamento da Agência das Águas; especialistas veem riscos”. Não se tratava da “equipe de Boulos”, que era um entre os mais de 20 integrantes do Grupo de Trabalho “Cidades na Comissão de Transição de Governo”. Nem se sugeria, exatamente, “tirar saneamento da ANA”, muito embora, convenhamos, essa seja uma cogitação que precisa ser discutida democraticamente.

Por que tal imprecisão na informação aos leitores? A atitude mais arrogante desse episódio estava no tratamento dado aos “especialistas” e “técnicos” do “mercado” em contraposição à “interferência dos políticos”. “O que queremos é que essas normas sejam feitas de forma robusta, técnica com equipe imunizada de questões políticas”, declarou um “especialista“ do “mercado”. É notável a pretensão de neutralidade dos “especialistas” ou “técnicos” do “mercado”, que se julgam “imunes às questões políticas”. Se resolvemos ocupar nosso tempo nessa disputa semiótica é para informar aos “especialistas” do “mercado” que eles se enganam quando acham que a privatização do saneamento vai resolver a determinação legal de universalização desses serviços até 2033 como determina lei 14.026/2020

É óbvia a situação de precariedade e a imensa dívida social do setor de saneamento em relação à população brasileira. Será necessário o reconhecimento da importância dos temas água e saneamento que devem estar no centro das políticas e dos investimentos anuais enquanto prioridades, pois estamos diante de um dos maiores problemas do país.

O acesso à água potável e à coleta, afastamento e tratamento de esgoto, ademais da coleta e disposição de resíduos sólidos, têm tudo a ver com a saúde da população e o meio ambiente. Praticamente 15% da população brasileira não tem acesso regular à água potável. Mais de 45% não tem esgoto coletado e, daquilo que é coletado, apenas cerca de 50% é tratado. A rede hídrica é o destino final de grande parte do esgoto e do lixo urbano, o que determina a poluição geral dos cursos d’água no entorno das cidades. Entretanto, o que os “especialistas” do “mercado” não sabem ou não reconhecem é que a maior parte desse déficit de saneamento é também um déficit de cidade. Estamos nos referindo à população urbana, nesse caso, embora grande parte do déficit seja rural, mas em ambos os casos a solução não está na ação empresarial privada e fragmentada no território.  

As tragédias que atingiram o litoral norte de São Paulo apenas comprovam o propósito que queremos evidenciar aqui de que o assentamento habitacional de grande parte da população brasileira se faz sem Estado e sem “mercado”: com  inobservância legal quanto ao registro da propriedade da terra, às leis de uso e ocupação do solo e ao código de obras; desconhecimento técnico, pela carência de arquitetos, engenheiros, geógrafos, geólogos  e outros profissionais; falta de investimento público ou financiamento privado na construção das casas. A pura e simples ocupação ilegal de terras que não interessam ao mercado imobiliário formal ou a compra de lotes ilegais são saídas para a completa e total falta de alternativas. 

Expulsas da faixa litorânea pelo mercado imobiliário, não restou às camadas populares outra alternativa senão os taludes desmatados da instável Serra do Mar. O preço da terra, decorrente dos investimentos e atributos que a cercam, está no coração dessa desigualdade. O nó da terra – a propriedade formal da terra valorizada – divide a sociedade brasileira no campo e na cidade. A questão é histórica e estrutural, as tragédias são recorrentes e o futuro é preocupante, pois o mercado informal da moradia está fortemente marcado pela ação das milícias e do crime organizado em todas as regiões do país. 

Em 2019, o número de moradias em favelas do Brasil era de 5,12 milhões (IBGE), ou seja, mais de 20 milhões de brasileiros vivem em favelas onde não há arruamento (ou endereço) regular. Muitas dessas favelas, especialmente no norte e nordeste do país, são formadas por palafitas. Grande parte da população urbana – em muitas metrópoles, a maior parte –  ocupa áreas legalmente vedadas, com construções informais, tais como: Áreas de Proteção Permanente (APPs), Áreas de Proteção de Mananciais (APMs), áreas inundáveis, áreas de risco de escorregamentos de solo e de desmoronamentos, entre outros. Essas construções informais são exatamente as que não têm endereço, nem pavimentação com drenagem urbana, nem acesso à água potável, nem ao afastamento de esgoto, nem à coleta de lixo, ou sequer à iluminação pública em suas ruas. E os que nelas moram são também os que não conseguem pagar pelos serviços, precisando e devendo ser contemplados com subsídios públicos. A ilegalidade urbanística – caracterizada ainda pelo racismo ambiental e territorial – constitui regra e não exceção no Brasil urbano, uma realidade cuja escala é desconhecida, com frequência, até no universo acadêmico.

A importância do Estado Social, das políticas públicas e da regulação democrática – econômica, social, territorial – é fundamental para a saúde e para a sustentabilidade ambiental e econômica. Uma visão sistêmica sobre o espaço urbano deve substituir o interesse privado, setorial, fragmentado, especulativo e rentista, se queremos superar a abissal desigualdade no Brasil. Essa não é, em definitivo, uma problemática estritamente técnica, como quer o chamado “mercado”. É, na substância, essencialmente política.

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