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A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.

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As mulheres precisam ter voz decisiva no processo de produção do espaço urbano

Em 20 anos do Estatuto da Cidade, a mulher continua sendo vorazmente consumida pelo papel que a sociedade machista lhe impõe

As mulheres precisam ter voz decisiva no processo de produção do espaço urbano
As mulheres precisam ter voz decisiva no processo de produção do espaço urbano
Foto: Istok
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As cidades brasileiras refletem o uso e a ocupação que o mundo masculino faz delas. Nossas cidades foram idealizadas e erguidas dentro de uma perspectiva em que a presença da mulher é ignorada e/ou desconsiderada no momento de escolher forma, função e modo de acesso dos espaços públicos.

Sendo a cidade a projeção da sociedade – conforme disse o sociólogo francês Henri Lefebvre – e, tendo em vista o desempenho dos inúmeros papéis desenvolvidos por mulheres em diferentes áreas, é de fundamental importância compreender como a funcionalidade urbana dialoga com a presença feminina. Neste contexto, a mulher continua sendo vorazmente consumida pelo papel que a sociedade machista lhe impõe e, apesar de um arcabouço jurídico tão qualificado, a cidade continua a ser negada como um espaço de liberdade segura para ser, estar e desenvolver-se.

Para nós mulheres, a cidade é um território inóspito, não importa o cabedal de funções que tenhamos que desempenhar a serviço do capital. O espaço de convivência social – que promete o desenvolvimento humano, o acesso ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação – deveria permitir que todos os segmentos sociais fizessem parte da sua concepção formal. Infelizmente, não é o que se apresenta, pois somente seria possível tal realização se os agrupamentos que se reúnem nas cidades estivessem calcados em bases sólidas e solidárias de promoção da justiça social, igualdade de gênero, de raça e com condições equânimes de oportunidades para todos e todas.

Citando o também sociólogo Boaventura de Sousa Santos, em tempos de pandemia da Covid-19 e aprofundamento de crises já existentes, os debates centrados nas relações sociais, questões de gênero e raça, somados às discussões sobre o papel do Estado nas searas políticas, sociais, culturais e econômicas continuam sendo os grandes desafios da humanidade.

Ora, se a luta para alcançar um patamar mais equilibrado de condições de vida tem sido um dos grandes desafios brasileiros, isso também significa dizer que precisamos permitir a participação geral na discussão sobre as políticas públicas, mas, especialmente, garantir que a mulher tenha voz decisiva no processo de produção do espaço urbano.

Ao falar da presença da mulher no âmbito das decisões sobre o uso e a ocupação que se deve dar à cidade, não se destaca tão somente segurança, integridade física e psicológica, mas também a importância de tal questão para o fortalecimento do Estado democrático e republicano.

O direito à cidade é uma condição subjetiva inserida em um contexto social, econômico e territorial de relações e interesses difusos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclama o reconhecimento da diversidade como protagonista na conquista do bem comum.

Segundo dados do IBGE, as brasileiras são responsáveis pelo sustento de 37,3% das famílias, equivalem a 51,4% da população brasileira atual e possuem expectativa de vida de 77 anos de idade. Em números, no Brasil, a mulher é quem mais ocupa os espaços, circulando, habitando, interferindo, voluntária ou involuntariamente, por meio de sua presença na construção e manutenção do sistema econômico brasileiro.

As mulheres também são maioria entre os eleitores e, na perspectiva da democracia pelo método quantitativo de participação, a explicação para a ausência das mulheres nos espaços políticos – partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve e pode ofertar – não se sustenta, fragilizando a possibilidade de um futuro de bem-estar social e vida coletiva digna.

A gestão democrática não se sustenta. A democracia brasileira está ameaçada. Sob essa perspectiva, a garantia da participação e assento nos espaços decisórios é uma das principais pautas reivindicatórias femininas, que inclui superar, também, a segregação política, socioeconômica e racial, que com um plus de crueldade exclui de tais espaços a mulher pobre e, dentre elas, e com ainda mais peso, as negras.

O debate pelo direito à cidade para as mulheres inclui diversas dimensões, as mesmas que são pilares de sustentação do direito à cidade: a dimensão política, a simbólica e a material. Sob tal perspectiva, cabe reclamar que as questões de gênero precisam ser enfrentadas por todes para que a mudança na mentalidade possa garantir a produção de espaços urbanos mais acolhedores.

Mirando o Estatuto da Cidade, é importante alertar que a oferta de moradia adequada para mulheres continua negligenciada. A luta pela unidade habitacional para quem é legada ao trabalho doméstico, não remunerado, urge tanto para garantir uma melhora de vida, quanto para permitir avanço nas etapas de fortalecimento e autonomia cívica. A acessibilidade dos serviços públicos, transporte e oferta de creches não pode ser tratada pelo Poder Público como um número relacionado ao quantitativo de unidades postas à disposição da sociedade, quando se sabe que as mulheres são as grandes vítimas da ausência desses serviços.

Cidades seguras e sustentáveis requerem a garantia da participação ativa da mulher na construção e desenvolvimento desse debate, além, claro, do enfrentamento da cultura machista, sem o qual não pode haver avanço. É preciso que o conjunto de políticas públicas urbanas, à luz do Estatuto aniversariante, seja verdadeiramente reparatório e protetivo. No momento de apagar as velinhas, desejo que a nossa tarefa no enfrentamento do patriarcalismo capitalista considere que a promoção do direito à cidade passa não só pela efetivação dos serviços e direitos, mas por impedir as violações e privações a que estão submetidas as mulheres em todo o território urbano.

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