BrCidades
A reconstrução democrática no Brasil vai exigir a produção de cidades socialmente justas e ambientalmente viáveis. Este o escopo do Projeto Brasil Cidades.
BrCidades
A produção da fábula do agronegócio
Precisamos pensar caminhos para enfrentar a catástrofe que a economia, a política, a sociedade e os territórios do agro vêm promovendo no País


No Brasil, a difusão do agronegócio globalizado tem se caracterizado por um processo espacialmente seletivo, economicamente concentrador, socialmente excludente, e ambiental e culturalmente devastador, promovendo cada vez mais a concentração de riquezas e o crescimento da pobreza estrutural, além de acirrar as desigualdades socioespaciais por todo o território nacional, no campo e nas cidades. Pelo exposto, torna-se necessário discutir alguns dos principais mitos que sustentam o agronegócio, de modo a estimular uma visão crítica sobre esse setor, como única forma de promover transformações, ou seja, ações contra-hegemônicas para reconstruir e modificar os processos hoje dominantes associados ao agronegócio.
A expropriação dos meios de produção e a alienação são alguns dos pilares estruturais do capitalismo e, para a manutenção do status quo, é necessária uma ideologia dominante. Por seu intermédio, tomamos o falso pelo verdadeiro, o injusto pelo justo. Assim, para a expansão do agronegócio e a perpetuação das desigualdades sociais, econômicas e espaciais dele resultantes, é imprescindível uma ideologia que o sustente. Nesse sentido, afirmo que o agronegócio produz mitos que fabricam um imaginário social a ele favorável.
As corporações e entidades de classe do agronegócio estão à frente da construção e da difusão dos mitos produzidos sobre o segmento. Para isso, contam com um amplo suporte das empresas da indústria cultural. Para produção, difusão e hegemonia do agronegócio, é necessária a construção de uma imagem que lhe seja conveniente. Dessa forma, para a expansão do capitalismo no campo e para a multiplicação da produção das mercadorias que o sustentam, não bastam a expulsão e a expropriação dos camponeses, das quebradeiras de coco, dos ribeirinhos, dos geraizeiros… Também é imprescindível a alienação associada ao agronegócio.
Recorro ao sistema de conceitos elaborado pelo geógrafo Milton Santos, que compreendeu o espaço geográfico como híbrido, resultante de um conjunto indissociável de materialidade e normas, uma tecnosfera e uma psicosfera (Santos, 1996), em permanente movimento. Para Santos, a psicosfera é formada pelo reino das ideias, das crenças, das paixões e dos sentidos, que estimula o imaginário e solidifica novos padrões comportamentais.
Nesse sentido, entendo que, além de construir sua tecnosfera – composta por estradas de rodagem, terminais portuários, armazéns e silos, canais de irrigação –, que gera fluidez e permite sua difusão por todo o território nacional, o agronegócio também forma uma poderosa psicosfera: um imaginário social que lhe é favorável, dissimulando as verdadeiras intencionalidades que regulam a tecnosfera inerente ao agronegócio (ELIAS, 2025).
Há muitos sites especializados, canais de TV, revistas e informes publicitários que trabalham para construir uma imagem positiva do agronegócio, o que indica que o domínio dos meios de comunicação constitui uma estratégia na guerra cultural de difusão de ideologias. São muitos os agentes da indústria cultural brasileira que atuam com esse objetivo.
Não é incomum que os próprios agentes do agronegócio, como corporações e entidades de classe, sejam proprietários de alguns desses meios de comunicação, como ocorre, por exemplo, com o Canal Rural, importante empresa de comunicação especializada no agronegócio, com canal de TV, site e contas nas mais diversas redes sociais. Em 2013, a empresa foi adquirida pela holding controladora do Grupo JBS (Canal Rural, 2018), classificado entre as maiores companhias brasileiras do agronegócio, com cerca de 400 unidades produtivas em 15 países nos cinco continentes, com negócios muito além das carnes, segundo a revista Forbes Agro 100.
Mas poucos veículos de comunicação obtiveram tanto sucesso na construção de uma imagem favorável ao agronegócio quanto a gigantesca operação publicitária empreendida pela Rede Globo de Televisão, intitulada “Agro é Tech, Agro é Pop, Agro é Tudo”. Ainda vigente, a campanha foi lançada em meados de 2016, contribuindo expressivamente para a desinformação de parte significativa da população brasileira. Não é demais lembrar que essa rede de televisão é o principal canal aberto do Brasil, pertencente ao Grupo Globo, a maior corporação de mídia e comunicação da América Latina e um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, indiscutivelmente o de maior audiência no Brasil.
Essa campanha da Rede Globo é um marco estruturante para qualquer periodização – elemento fundamental do método científico – que se deseje estabelecer sobre a relação entre o agronegócio e a mídia brasileira. Dessa forma, entendo que o papel da Rede Globo foi e continua sendo central para a construção da poderosíssima psicosfera do agronegócio, ou seja, trata-se de um dos principais agentes responsáveis pela difusão de vários mitos do agronegócio no imaginário nacional.
A psicosfera do agronegócio e a criação dos mitos a ele associados estão entre as principais ações da concertação política em torno do setor, apresentando-o como um “produto” que vem sendo consumido por grande parte da população brasileira. Adaptando a noção de Milton Santos (1987) aplicada a outros temas, afirmo que foi produzido “um consumidor mais-que-perfeito” para o agronegócio brasileiro.
Alguns dos mitos mais difundidos em relação ao agronegócio são: o de que há um compromisso com a construção de um projeto de nação; o de que o agronegócio é responsável pela segurança e soberania alimentar do País; o de que é independente do Estado; o de que promove distribuição de renda; o de que o modelo do agronegócio é o único possível para o País; o de que os alimentos ultraprocessados não prejudicam a saúde; o de que a ocupação das fronteiras agrícolas é inteiramente realizada em bases legais; o de que o agronegócio traz paz para o campo; o de que promove uma urbanização que traz benefícios a todos; o de que o agronegócio alimenta o mundo e acabaria com a fome no Brasil; o de que é ambientalmente sustentável; o de que os agrotóxicos não fazem mal à saúde humana e ao meio ambiente, entre tantos outros.
Após décadas de privilégios oferecidos aos segmentos do agronegócio no Brasil, temos como resultados: o agravamento da concentração fundiária; a expulsão e a expropriação de vários povos originários, com a eliminação de muitos saberes e fazeres historicamente construídos; e a expansão de monoculturas, com as consequentes devastação ambiental e diminuição da biodiversidade, gerando um avassalador processo de erosão genética.
De outro lado, temos a fragmentação do território e a difusão de especializações territoriais produtivas, acompanhadas pelo avanço da urbanização corporativa e pela (re)estruturação urbano-regional. Formam-se, assim, regiões produtivas compostas por campo e cidades altamente funcionais ao agronegócio, revelando o uso corporativo do território e rompendo completamente com os esquemas clássicos da hierarquia urbana válidos até os anos de 1980.
É válido lembrar que a territorialização das corporações do agronegócio no espaço agrário e a monopolização desse espaço por essas corporações não ocorrem sobre o nada, mas sobre formações socioespaciais repletas de vida e de história. Esses processos se impõem através de inúmeros conflitos por terra e por seus bens naturais (água, minérios, biodiversidade), envolvendo grilagens, expropriações, expulsões e assassinatos, de modo a perpetuar o traço estrutural da violência e dos conflitos no campo, que seguem presentes até os dias atuais.
A difusão do agronegócio em escala nacional conserva e, em muitos casos, intensifica alguns traços históricos da sociedade brasileira, como as estruturas de poder baseadas no patrimonialismo, com o crescente entrelaçamento entre as esferas pública e privada. Compreendo, inclusive, o agronegócio como uma evidência importante da inserção subordinada do Brasil na divisão internacional do trabalho no atual período histórico.
Por tudo isso, o tecido social brasileiro se encontra profundamente esgarçado: a exclusão de milhões de cidadãos e a manutenção da cultura do privilégio moldam, cada vez mais, as relações sociais, inibindo a construção de uma sociedade de direitos. Isso se expressa em experiências cotidianas, como tensão social, violência e banalização da vida humana.
Considerando esse panorama, não parece exagero afirmar que o agronegócio tem representado um verdadeiro desastre para o Brasil, um entrave para a construção de um projeto de nação e um obstáculo à reconstrução e à transformação do País rumo ao amadurecimento da democracia.
Completando um quarto do século XXI, o Brasil vive graves pressões e ameaças à democracia. Precisamos pensar os caminhos possíveis para enfrentar a catástrofe que a economia, a política, a sociedade e os territórios do agronegócio vêm promovendo no País. É urgente a desconstrução dos muitos mitos criados sobre o agronegócio, visto que estes funcionam como nós estruturais da sociedade brasileira e permitem o uso corporativo do território livremente pelos agentes hegemônicos do agronegócio, que se apropriam dos bens naturais de toda a população.
Estes estão entre os principais temas discutidos no livro A produção da fábula do agronegócio no Brasil: novas e velhas faces da dependência, de autoria de Denise Elias, que será lançado no próximo sábado 6 de setembro às 15h, no Armazém do Campo, em São Paulo, e contará com a participação da geógrafa e professora Mónica Arroyo (USP), de representantes do MST e com a mediação da arquiteta e urbanista Carina Serra, da Coordenação Nacional do BrCidades.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Depois de anos bicudos, voltamos a um Brasil minimamente normal. Este novo normal, contudo, segue repleto de incertezas. A ameaça bolsonarista persiste e os apetites do mercado e do Congresso continuam a pressionar o governo. Lá fora, o avanço global da extrema-direita e a brutalidade em Gaza e na Ucrânia arriscam implodir os frágeis alicerces da governança mundial.
CartaCapital não tem o apoio de bancos e fundações. Sobrevive, unicamente, da venda de anúncios e projetos e das contribuições de seus leitores. E seu apoio, leitor, é cada vez mais fundamental.
Não deixe a Carta parar. Se você valoriza o bom jornalismo, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal da revista ou contribua com o quanto puder.
Leia também

Mais que a moradia: a luta pelo direito de habitar a cidade
Por Victor Martinez Corrêa e Sá e Larissa da Silva Noriko Hiratsuka
Vender ou urbanizar? O destino de Saramandaia em jogo
Por Rafael Viana e Caio Couto
A feminização da pobreza e os desafios da habitação social no Brasil
Por Daniela Sarmento