Augusto Diniz | Música brasileira
Jornalista há 25 anos, Augusto Diniz foi produtor musical e escreve sobre música desde 2014.
Augusto Diniz | Música brasileira
Rubel lança álbum de 20 faixas e explora ritmos e narrativas num disco plural e engenhoso
O cantor e compositor foi a fundo na pesquisa de sons tradicionais e contemporâneos e criou um excepcional trabalho
O álbum As Palavras (Coala Records) é dividido em dois volumes. O primeiro é um convite para o segundo. Os dois juntos mostram um denso trabalho de pesquisa do cantor e compositor Rubel, com uso da sonoridade tradicional e ritmos contemporâneos e narrativa forte e reflexiva. Trata-se de um disco riquíssimo em letra e melodia.
“Eu comecei a pensar nesse disco no início de 2019. E ele partiu de uma vontade de ampliar meu repertório. Queria fazer um trabalho que dialogasse mais com a realidade e a situação brasileira no momento em que a gente estava vivendo”, explica Rubel em entrevista a CartaCapital sobre o seu terceiro álbum, depois de Pearl (2013) e Casas (2018). “Senti que meu trabalho estava muito desconectado do Brasil, da tradição da música brasileira”, afirma.
No processo de produção do disco, Rubel conta que precisou estudar a cultura, a história, a tradição e a literatura brasileira, além de teoria musical e o ofício da canção.
“Esse disco é muito do meu encantamento pela música, pela cultura brasileira e as suas diferentes ramificações. Esse processo levou quase que acidentalmente um disco multifacetado”, diz. Rubel fez um trabalho onde conversa com vários gêneros musicais brasileiros, a começar pelo forró, depois o pagode, o funk, a MPB e o samba tradicional, numa fluência musical rara, sem cair na banalidade entre uma faixa e outra.
Ele conta que teve que articular as ideias, gêneros e letras em um álbum só, o que foi um exercício e tanto, devido à variedade temática.
“Quando a gente estava organizando a ordem do disco, ele ia da primeira a quinta marcha muito rápido e as transições eram abruptas, pareciam discos diferentes. Demorou para a gente entender um roteiro, uma linearidade, que fizesse parecer um disco só”, relata.
O álbum, no fim, foi divido em dois volumes para se “contar a história” do projeto. “O primeiro lado (volume) queria que fosse mais solar, tivessem as canções mais populares, e que de alguma forma prendesse a atenção das pessoas de cara, para que elas pudessem estar preparadas para o segundo volume, que é um pouco mais denso, que tem letras mais complicadas, canções mais longas, que estão mais ancoradas na música tradicional brasileira”, explica.
No fim, a ideia deu muito certo. “O álbum constrói uma narrativa com músicas mais animadas, que dialogam com a música brasileira contemporânea, para depois se jogar num lugar que fala de questões políticas”, complementa.
Rubel usou recurso de vinheta (ou interlúdio) em dois momentos – uma no volume um e outra no dois – do álbum, que ajudaram a conectar o repertório do disco.
As vinhetas são de dois áudios de WhatsApp afetuosos que recebeu de duas amigas: o primeiro de Ana Caetano, da dupla Anavitória, e o segundo da Dora Morelenbaum, da banda Bala Desejo. Uma trata das palavras e outra da sonoridade propiciadas pela língua portuguesa. Um soul no fundo embala a fala das duas.
O disco abre com um forró instrumental, com Mestrinho na sanfona, e segue com pagode moderno Grão de Areia (nessa canção Rubel divide parceria com Ana Caetano e Tó Brandileone), com participação de Xande de Pilares.
Segue com Não Vou Reclamar de Deus – com produção atualíssima de Ana Frango Elétrico – e Toda Beleza, esta com participação mais do que bem vinda da banda Bala Desejo e toques percussivos da Orkestra Rumpilezz, numa rica mistura – a faixa é uma homenagem ao maestro Letieres Leite, um dos responsáveis em colocar a percussão brasileira no seu devido lugar: na linha de frente da instrumentação.
Putaria é um funk encaixado à proposta do disco multifacetado, com a participação inefável de MC Carol. Depois Rubelía, uma música instrumental curta cheia de beats.
Posso Dizer (Rubel dessa vez divide a parceria com Mahmundi e Carlos Rufino) é um bom samba, comtemporaníssimo, com instrumentação aberta a leves intromissões de outros gêneros – fora os dispersos usos de jargões do samba no fundo, de leve
Vem então a vinheta com Ana Caetano e, em seguida, a faixa-título As Palavras, composição de Rubel com outro talento em ascensão da música brasileira e de sua geração: Tim Bernardes. Letra e melodia no mais alto nível. O volume 1 encerra com narração dramática em meio ao som do forró, o mesmo que abre o disco.
A parte 2, mais introspectiva, começa com música de adaptação (e evocação) do grande livro de Itamar Vieira, Torto Arado, com participação de Liniker e Luedji Luna. Lua de Garrafa lembra o frescor musical do Clube da Esquina e tem participação de Milton Nascimento.
Na marcha Na Mão do Palhaço, Rubel referencia nossa festa maior: o carnaval. Doutor Albieri é um samba-jazz com pintada de forró, que abre as portas na faixa seguinte para o samba de linhagem tradicional de tema familiar: Samba de Amanda e Té.
Amor de Mãe dá continuidade à fase mais reflexiva do disco. Surge então a vinheta com Dora Morelenbaum. O disco, quase no fim, tem ainda duas obras-primas de Luiz Gonzaga – e as únicas regravações do álbum: Assum Preto (com Dora Morelenbaum cantando à capela) e Forró no Escuro. Nas duas, a ideia do Brasil profundo. O disco encerra com gravação caseira e rústica da já executa Toda Beleza.
O trabalho é uma valorização ao álbum e suas inúmeras possibilidades e meio a lançamentos excessivos de singles vazios e sem significados. Rubel conta que teve que lutar para que não fosse lançado pela distribuidora um single antes do álbum completo, o que poderia descaracterizar o projeto e levar o ouvinte a percepção errada do trabalho.
“O grande barato é ouvir a história do começo ao fim”. Sim, de fato o é, e muito. Faz todo sentido. É um disco para ouvir, dança um pouco. Rubel montou um panorama da música brasileira. É um discaço.
“Em uma instância, é uma reflexão porque ainda gosto de ser brasileiro, porque quero pertencer a esse lugar, o que me trás orgulho, o que me trás paixão nesse território que vive um momento tão estranho, viveu nos últimos anos. Essa é a reflexão mais essencial do disco”, afirma.
Assista a entrevista de Rubel a CartaCapital na íntegra:
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