Augusto Diniz | Música brasileira

Jornalista há 25 anos, Augusto Diniz foi produtor musical e escreve sobre música desde 2014.

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Com festival, Juazeiro celebra João Gilberto, seu filho ilustre: ‘Não queremos a música oportunista’

O evento contou com a participação de cantora Luísa Carolina, filha de João, e de Roberto Menescal, criador da bossa nova

Com festival, Juazeiro celebra João Gilberto, seu filho ilustre: ‘Não queremos a música oportunista’
Com festival, Juazeiro celebra João Gilberto, seu filho ilustre: ‘Não queremos a música oportunista’
Estátua de João Gilberto em Juazeiro (BA). Foto: Augusto Diniz
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Claudia Faissol, mãe da filha caçula de João Gilberto (1931-2019), Luísa Carolina, lembra que quando viajava com o cantor à sua cidade natal, Juazeiro (BA), ele gostava de sair às 4 horas da madrugada para não ser reconhecido. 

Faissol participou do Festival A Bossa, realizado de 28 a 30 de novembro em Juazeiro. A história de João, relatada no evento, soou como mais uma excentricidade do artista.

No Centro de Cultura João Gilberto, ela fez pela primeira vez uma exposição completa com suas pinturas. Na mostra, realizada durante o festival, havia 12 pinturas sobre tela com tinta à base de água, inspiradas na música do gênio brasileiro.

A maior parte das obras faz referência a músicas não gravadas por João, mas que, segundo Claudia Faissol, ele desejava registrar — tendo, inclusive, ensaiado no violão. 

Uma dessas canções é Existe um Céu (Francis Hime e Geraldo Carneiro). Nos quadros aparece com frequência a imagem de um violão, e no caso das pinturas ligadas a alguma música não gravada, o instrumento surge sem cordas.

Outra tela em exibição critica três reedições de discos clássicos de João Gilberto — ele decidiu processar a gravadora por não concordar com a remasterização dos álbuns depois de relançados. O autor ganhou a causa em 2023, quatro anos depois de sua morte.

“Ele ficou muito magoado com essa atitude. Nenhuma obra de arte pode ser mudada”, disse Claudia Faissol em entrevista a CartaCapital, que acompanhou o festival a convite da organização. Para ela, a bossa nova é a linguagem que João tirou do violão e da voz, criando uma sonoridade única, tão milimetricamente pensada quanto imutável.

Filha de Faissol e João Gilberto, Luísa Carolina, a Loulu, de 21 anos, se apresentou no palco montado na orla do Rio São Francisco, com entrada gratuita. No show do sábado 29, um dos primeiros de sua carreira, ela esteve com Matheus Frugoli (violão) e Zezinho Farias (bateria). A cantora, que deve lançar um disco em breve, basicamente recuperou o repertório do pai. 

Embora no palco tentasse seguir a linguagem de João Gilberto, Loulu mostrou que ainda precisará caminhar muito para unir voz e violão de acordo com o perfeccionismo do pai.

A filha de Faissol e João Gilberto, Luísa Carolina. Foto: Gilson Pereira

Roberto Menescal, que participou do primeiro dia do festival acompanhado do cantor e compositor Theo Bial (filho do jornalista Pedro Bial e da atriz Giulia Gam), exaltou João Gilberto. “A gente sempre deve homenageá-lo. Como ele não falava dele, a gente deve fazer isso”, afirmou. Foi a primeira vez que um dos criadores da bossa nova realizou um show na cidade do pai do gênero. 

O primeiro encontro de Menescal com João Gilberto foi inusitado, assim como toda a história que envolve o baiano. “Em 1955, João bateu na minha casa. Era um dia de festa, 30 anos de casamento de meus pais. Estava de porteiro recebendo as pessoas. Ele chegou e perguntou se tinha um violão”, contou Menescal, que entregou o instrumento ao sujeito que não havia ainda reconhecido. João tocou Hó-bá-lá-lá.

Foi assim que Menescal reconheceu João Gilberto. Os dois saíram imediatamente para conversar sobre música, um bate-papo que se estenderia por três dias. 

“Ele abriu o caminho para a bossa nova com a tal batidinha dele. Perguntei certa vez de onde vinha essa batida no seu violão e ele respondeu: ‘do samba’. Eu disse que a batida de todo mundo vinha do samba, mas João acrescentou: ‘do tamborim.’”

Roberto Menescal no Festival A Bossa. Foto: Anamauê

Com 70 anos de carreira, Armando Pittigliani, importante produtor da bossa nova, teve um grande contato com João Gilberto quando este lançou o disco João (1991). Pittigliani trabalhava na gravadora responsável.

“Ele botou a roupa definitiva na música popular brasileira”, define. “É muito pouco que se faz no Brasil para João. Se ele estivesse em outro lugar do mundo, seria mais incensado.”

Mauricio Dias, o Mauriçola, cantor e compositor de Juazeiro que também se apresentou no festival, tem lembranças pessoais com João Gilberto. “Ficamos amigos. Ele passou a falar comigo pelo telefone. João, para mim, era extraterrestre.”

Ele chegou a musicar dois poemas de João Gilberto — Regina e Pingos Molhados, escritos quando o pai da bossa nova tinha 15 anos —, mas o cantor não deu muita pelota à investida do amigo, dizendo que não tinha a habilidade dos grandes poetas, entre eles Carlos Drummond de Andrade.

Mauriçola avalia que a população de Juazeiro não reconhece devidamente João Gilberto, que ganhou fama internacional como pouquíssimos brasileiros. “A geração atual é desinteressada na bossa nova”, justifica. O músico juazeirense está em processo de escrever um livro, intitulado Surubim Bossa Nova, com histórias da convivência com João.

Targino Gondim, secretário de Cultura, Turismo e Esportes de Juazeiro e idealizador do festival, considera necessário reverter esse quadro de “pouco caso” com João Gilberto em sua terra. Targino nasceu em Salgueiro (PE), mas chegou aos dois anos à cidade do pai da bossa nova. Ele se tornou sanfoneiro e é autor de Esperando na Janela, ao lado de Manuca Almeida e Raimundinho do Acordeon, que virou sucesso na voz de Gilberto Gil em 2000.

O Memorial Casa da Bossa Nova, local em Juazeiro onde João Gilberto passou a infância e uma parte da adolescência, tem recebido estudantes da região depois de passar por uma reforma da prefeitura. 

“A gente começou a trazer educação para a casa de João Gilberto, para que as crianças comecem a tomar conhecimento da importância dele — e esperamos que elas passem isso para os pais”, explica o secretário. A casa do cantor ainda tem poucos materiais expostos, mas a ideia é ampliar o acervo. “A gente quer mostrar que celebra e respeita a obra de João Gilberto. Muitos lugares falam dele, mas Juazeiro está muito à mercê da indústria, dessa música imediatista e oportunista.”

O cantor Mauricio Dias, em acordo com a prefeitura, tem visitado escolas para contar aos estudantes sobre a importância de João.

Nos três dias da programação de shows, o Festival A Bossa teve também apresentações de Lenine, Roberta Sá, Daniel Jobim, Vanessa da Mata e artistas locais, incluindo Silas França, Mônica Sangalo (irmã de Ivete Sangalo), Quinteto Sanfônico do Brasil (integrado por Targino Gondim) e Alexandre Leão. O evento promoveu também a 27ª edição do Festival Edésio Santos da Canção, o mais tradicional de música autoral da região. O público marcou presença, com plateia menos expressiva no segundo dia.

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