Augusto Diniz | Música brasileira
Jornalista há 25 anos, Augusto Diniz foi produtor musical e escreve sobre música desde 2014.
Augusto Diniz | Música brasileira
Cantos de trabalho resistem nos rincões do País
Renata Mattar, musicista e pesquisadora de canções cantadas nas tarefas dos trabalhadores, relata sobre a preservação da prática centenária
São raras as comunidades que ainda mantêm vivos os seculares cantos de trabalho. O avanço da tecnologia e dos meios de comunicação e as mudanças de modo de vida vêm fazendo desaparecer ano após ano a prática iniciada no País pelos povos originários.
Renata Mattar vai contando sobre a tradição. A musicista pesquisa desde 1999 lugares onde trabalhadores se organizam em mutirões para realizar tarefas que são acompanhadas pelo canto, que sincroniza, estimula e impulsiona o trabalho. A pesquisadora já fez importantes registros do que ainda encontra desse costume.
“Em 2017, tive grande surpresa, quando me deparei, numa região do sertão da Bahia, na bacia do Jacuípe, grupos de trabalhadores que, num processo de resistência cultural, ainda mantinha os cantos de trabalho, seja para plantar, para descaroçar, para aboiar o gado, para raspar a mandioca, para limpeza do terreno antes da plantação”, conta a musicista, que junto com o arranjador e produtor musical, Gustavo Finkler, lidera o grupo Cia. Cabelo de Maria, que já lançou discos e faz apresentações em torno do tema.
Ela aponta cantigas de trabalho nas destaladeiras de fumo (Arapiraca-AL), na bata de milho e feijão (Serra Preta-BA), na raspagem da mandioca (Baixa Grande-BA), nas fiandeiras de algodão (Vale do Jequitinhonha-MG), nas quebradeiras de coco babaçu (MA), nas colheitas de arroz (Propriá-SE), na tapagem de casa de pau a pique, no pilar e peneirar do milho, no pilar do café, entre os canoeiros, aboiadores, lavadeiras, catadeiras de marisco, na capina de roça, além de cantadeiras do sisal (Valente-BA) e cantadores de cacau (Sul da Bahia).
“Na pandemia, esses grupos seguiram realizando as reuniões relativas aos trabalhos, tamanha a força da coletividade, da solidariedade e da maneira como dependem uns dos outros para produzir o alimento. O canto continuou presente. O que foi prejudicado foram os festejos ligados a esses grupos, como samba de roda, folias de reis, mas rapidamente retomaram. Existe um forte elo que rapidamente se refaz onde a vida ainda é ritualizada”, conta.
“Nas comunidades onde já são raros esses costumes, sinto que cada vez mais se distanciam do coletivo e das raízes, muito pautados pelo que vem de fora. Nesses lugares, a noção de comunidade se desfez e desastres como a pandemia desarticularam mais ainda esses agrupamentos”.
A musicista cita a necessidade urgente de registro das cantigas de trabalho pelo fato de muitos guardiões desses cantos estarem em avançada idade, sem que se tenha sido transmitida a tradição oral para seus descendentes.
“Esses cantigas trazem heranças de modos de trabalhar que vieram dos povos africanos, das matrizes europeias e das inúmeras etnias indígenas. Através deles eram passados conhecimentos sobre trabalhos específicos e versos eram criados onde a observação da natureza estava inserida. Falava-se também de amor. Até notícias da época eram divulgadas entre refrãos”, diz.
“Alguns cantos preservam enigmas que não podiam ser decifrados pelos donos da terra, gerando conversas entre os trabalhadores, outros continham metáforas que ajudaram nas fugas de escravos para os quilombos”.
Renata Mattar costuma fazer oficinas em escolas sobre cantos de trabalho. Atualmente, desenvolve vivências com mulheres indígenas do Alto Xingú, da etnia Mehinako, para aprender e registrar cantos ligados aos trabalhos de tecelegem desse povo. “Pretendo me aproximar mais das culturas indígenas que preservam inúmeros cantos e também me aprofundar no conhecimento das comunidades quilombolas”, afirma.
Pelo Selo Sesc, a Cia Cabelo de Maria lançou o intitulado Cantos de Trabalho nos anos de 2007 e 2018. Os dois volumes resgataram temas das pesquisas de Renata Mattar.
O Sesc chegou a fazer quatro episódios das andanças de Renata Mattar no resgate das cantigas de trabalho. Um deles, abaixo, dá a ideia da importância do projeto:
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