A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

‘Não precisamos negar nossos tempos’, diz Tobias Carvalho

Vencedor do Prêmio SESC 2018 na categoria de contos, autor se liberta da narrativa comum da experiência de descoberta da sexualidade

Ínternet mudou a maneira como as pessoas se relacionam, então é pouco possível que isso não vaze para a literatura'
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As coisas, livro de estreia de Tobias Carvalho, mergulha na cabeça, no coração e na vida de personagens gays vivendo diversas experiências ao longo da vida.

Tal qual Amora, da vencedora do Jabuti Natália Borges Polesso, ele se liberta da narrativa comum da experiência de descoberta da sexualidade para explorar momentos de um relacionamento de uma forma muito mais ampla e completa: da relação com o pai ao tédio diário e a busca de sexo, o livro tem narrativa e empatia competentes para construir vozes sólidas e nos transportar para diferentes peles.

Confira a entrevista com o autor.

Você acha que seu livro é um Amora da experiência homossexual masculina?
 
Não acho.
 
Você fala de política, cita eleitor do PSDB armado. Como você acha que a situação política vai intervir na literatura com o resultado recente da eleição?
 
Espero que bastante. A situação fica tão crítica que para muitos artistas é quase um dever endereçar o assunto. As pessoas não se dão conta da importância da narrativa, da arte como comunicação entre humanos, de marcar presença, de dar as mãos. Passou pouco tempo desde a eleição, e talvez a poeira demore muito para baixar, mas já estou me sentindo estranho de escrever sobre qualquer outra coisa.
 
Você acha que a literatura tem função social?
 
Sim. Como formadora de senso crítico e empatia, a literatura continua sendo a plataforma mais completa. Apenas que vem sendo difícil de competir com o celular e driblar a falta de público leitor.
 
Você fala de um lado da homossexualidade que parece ser menos explorado despido da intenção pura de gerar choque, mas você não parece querer gerar choque. Em um dos contos, um personagem chama o narrador de “bem putinho”, narra o ato sexual, mas a forma como a trama avança é muito mais literária que polêmica. Como você vê essa dicotomia? Aliás, existe dicotomia?
 
Na minha cabeça era tudo só literário, sem a polêmica. É provável que a muitos leitores o livro soe como polêmico, mas a culpa não é minha. Meus contos são narrativas convencionais, com enredos simples, finais relativamente conservadores para a estrutura de contos… Foram as histórias que eu queria contar, as questões que me moviam quando escrevi, e tentei fazer que tudo soasse verossímil. Falar de sexo é tão humano quando qualquer outra questão.
 
Diferente do Amora, você fala muito de sexo no seu livro, e “promiscuidade” é uma acusação preconceituosa bastante comum a homossexuais. Por que isso foi tão trabalhado nas suas histórias?
 
Eu tenho a teoria de que a experiência homossexual masculina e feminina são diferentes principalmente por causa do machismo (e o Amora fala da experiência lésbica com muita singeleza e maestria). Na minha cabeça, como os homens são ensinados desde que nascem a poder gostar de sexo e a ostentar isso, enquanto as mulheres aprendem a reprimir, os casais homossexuais comportam essas diferenças.
Essa noção de promiscuidade vem do mesmo lugar. Os homens heterossexuais jamais são acusados de serem promíscuos (deve ser bom estar no topo da cadeia, aliás). Meu livro fala um pouco sobre como a liberdade sexual que hoje em dia é proporcionada aos homens gays pode ter um ônus também, o de desincentivar vínculos saudáveis para nós, o contato humano mais profundo. Não negando o lado libertador e empoderador dessa “promiscuidade”, é claro.
 
O seu livro pode ser considerado autoficção? Como você vê a popularização do gênero na atualidade em que as redes sociais fazem de todos curadores/narradores da própria vida?oi
 
Eu não vejo assim. Acredito que meu livro se encaixa nesse limbo que a maioria dos autores atribuem às obras: há algo sim de autobiográfico, impossível não haver, afinal não tiramos as coisas do nada; mas criamos algo novo quando ficcionalizamos o material bruto. O As Coisas vem disso, de uma mescla de invenções, vivências, relatos, elocubrações.
Mas eu gosto de autoficção, acho um gênero bem moderno. Existem autores tentando traduzir a linguagem e o ennui das redes sociais para a literatura, e tendo a achar positivo. Não precisamos negar nossos tempos.
 
Outro momento interessante é a relação do narrador com a família, com os amigos, que é mostrado no conto em formato de conversa, no conto com o pai, etc. Trazendo pra literatura: como a sua família e amigos reagiram a sua escolha de ser escritor? 
 
Não é uma escolha, Clarissa, as pessoas nascem assim. Lembro de ser bem pequeno e já brincar de escrever historinhas ou estar rodeado de livros em vez de estar jogando futebol.
Meus amigos aceitaram muito de boas. Já a família demorou um pouco mais. Foi um pouco tenso no começo, mas as pessoas vão aceitando aos poucos. Meus pais ficaram surpresos, mas acredito que sabiam desde sempre.
 
A presença do mundo digital é muito forte nos contos: aplicativos, conversas, etc. Como você acha que a internet interfere no fazer literário?
 
O problema que todo mundo tem enfrentado é que a internet tira tempo, cria a ilusão de que precisamos estar conectados, que, de outra forma, estamos perdendo alguma coisa. Ela mudou a maneira como as pessoas se relacionam, então é pouco possível que isso não vaze para a literatura. Não consigo não pensar sobre isso. Acho que meu próximo livro vai ter isso mais central ainda.
 
Como você acha que vir do sul, berço de outros autores consagrados e inclusive vitoriosos no Prêmio SESC (oi, Luisa Geisler), interferiu na sua escrita?
 
Uf. É verdade, aqui em Porto Alegre existe uma efervescência cultural que não sei de onde vem, temos uma forte tradição de oficinas literárias, e tem muita gente boa (oi, Luisa Geisler) (oi, R. Tavares, Tiago Germano, Samir Machado de Machado, Debora Ferraz). O engraçado é que os jurados do Sesc de 2018 na minha categoria eram 2 gaúchos. Cheira a marmelada, né?
A maioria dos meus contos se passam em Porto Alegre. Alguns não tem marcação de cidade, um deles se passa no interior de Rondônia (até hoje não sei bem por quê), mas a maioria tema referência espacial de Porto Alegre bem forte. Como nasci e cresci aqui, imagino que faça todo sentido (oi, autoficção). É uma boa cidade pra se viver.
 
Que autores nacionais e estrangeiros você diria que são sua influência?
 
Só me repito nas referências, mas vou com Haruki Murakami, Jonathan Franzen, Cormac McCarthy e David Foster Wallace, o que é meio estranho, porque, pensando bem, eles não têm muito a ver com o As Coisas. O João Cabral de Melo Neto foi um autor daqui que mudou muito o jeito como eu vejo literatura. O último romance do Joca Reiners Terron é outro que todo mundo deveria estar lendo.
as coisas
As Coisas, de Tobias Carvalho
Editora Record, 2018
144 páginas
R$ 34,90

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