A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Quando me sinto uma personagem de “O Conto da Aia”

Memórias de um dia na UTI, das canções de Lou Reed e do livro de Margaret Atwood transformado em uma série de tevê

Cena de The Handmaid's Tale
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Foi em uma quarta-feira 13, no primeiro mês de 2016, que acordei zonza depois do procedimento. No meu sono de remédios e fraqueza, implorava a Deus pra essa dor agonizante no abdome passar.

O bipe da paciente ao lado não parava de apitar, e pelo que pareceram dias infinitos – mas foram mais ou menos 24 horas – na UTI do hospital, com cada um deles eu sentia que meu corpo inteiro ia desmanchar, cada um deles servindo de catalisador para a piora da enxaqueca, pro próximo vômito que fazia eu sentir os cortes na barriga se abrirem um por um de novo. É claro que nenhum estava se abrindo.

Se ela morrer, os bipes vão parar.

Oh, oh, what a feeling da canção “The Bed” de Lou Reed ecoava em um ritmo delirante na minha cabeça embaçada. Que sensação, realmente. O disco inteiro – “Berlin”, um dos meus favoritos – tinha sido a trilha sonora do avião que me levou até o hospital. Nessa música, a personagem dessa ópera rock acabava de cometer suicídio.

Se eu morrer, os bipes também vão parar.

Quando as cores frias marcadas pelo vermelho ocasional invadiram minha televisão, alguns anos depois, eu só conseguia pensar no dia em que perdi o útero, as trompas, os ovários, o peritônio. Eu não poderia ser uma aia em The Handmaid’s Tale.

Isso era bom?

Os Estados Unidos acabaram, e nesse novo mundo ser fértil é um presente. Gilead é seu nome, a nova nação criada em cima dos escombros do país da liberdade, após um golpe político religioso construído em cima de notícias falsas, da exploração do medo de terroristas islâmicos, de preconceitos fundamentados na Bíblia e de desastres naturais que causaram esterilidade em massa.

As semelhanças são meras coincidências.

Gilead é o fruto de um livro de 1985 que se tornou uma série do Hulu, serviço de streaming de vídeo concorrente da Netflix. Não havia um presidente nos Estados Unidos com uma página da Wikipedia inteira destinada apenas a alegações de violência sexual, com um vice que se tornou o mais poderoso fanático religioso do mundo. Nem mesmo Margaret Atwood, a autora dessa distopia que poderia ser ou é ou será realidade, poderia prever que Donald Trump e Mike Pence seriam eleitos presidentes.

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A série localiza a história em 2017, ecoando Tinder, protestos feministas, ioga e smartphones no passado recente da protagonista, June, vivida pela espetacular Elisabeth Moss. Um dia, após correr pelo bairro com a melhor amiga, Moira (a também maravilhosa Samira Wiley), ela tem o cartão rejeitado ao tentar comprar um café. O vendedor é explicitamente agressivo no tratamento com elas.

Vamos sair daqui, vamos embora, ele não vale a pena, June fala para Moira, virando as costas, ficando em silêncio, desistindo da briga.

É naquele dia que ambas descobrem que perderam os empregos e a autonomia financeira. A partir daquele momento, mulheres não podem mais trabalhar ou ter posses, incluindo dinheiro, que automaticamente vira propriedade de seu parente homem mais próximo.

A partir daí se estabelece a nova sociedade divida em castas: as Esposas, mulheres dos comandantes políticos, as Marthas, mulheres inférteis destinadas a cuidar da casa, fazer a comida, limpar e lavar, e as Aias, as sortudas mulheres férteis protegidas e cuidadas por Tias, responsáveis por treinamentos do tipo Laranja Mecânica para que reaprendam sua única missão no mundo: procriação.

As aias são despidas de seus nomes. A protagonista vira Offred (Dofred, literalmente posse de seu Comandante chamado Fred, e que também se assemelha à palavra em inglês offered, ou seja, oferecida) e de sua humanidade: viram úteros ambulantes, prontas para serem barriga de aluguel de uma família depois da outra, enquanto tiverem saúde para isso.

Nesse estupro institucionalizado, a Esposa é convidada a participar como uma forma distorcida de se manter a ilusão de fidelidade. Mas não se engane: a Esposa também não pode ler, dirigir, ter posses, escrever, construir amizades ou se relacionar com outros homens.

Infertilidade é palavra proibida nesse cenário. E é a minha realidade. Mas eu nunca exatamente tinha tido um desejo muito forte de ser mãe… Tinha?

Desde pequena as bonecas ficavam jogadas em um canto, enquanto eu me dedicava a planejar um futuro brilhante com Barbies que eram cantoras, atrizes, mulheres maravilhosas que representavam aquilo em que eu achava que ia me tornar. O bebê de borracha, os olhos eternamente abertos como se estivesse morto, eu tinha abandonado.

Mas quando eu recebi a análise patológica nas mãos com a sentença de que eu precisaria abortar todas as chances de ser mãe, tudo aquilo ainda parecia irreal. Eu não queria ser mãe, mas queria ter a experiência de gestar, queria parir, viver a dor e a maravilha de sentir uma vida crescendo e surgindo das minhas entranhas. Das minhas entranhas podres, sujas de genes defeituosos com síndromes de câncer e depressão. Pra qual infeliz eu ousaria entregar minha genética?

“They’re taking her children away because they said she was not a good mother” é outro refrão da trilha sonora que acompanhou minha cirurgia. Lou Reed, ele sim, é um deus, e meu luto atrasado pela morte dele foi reavivado pela partida de David Bowie poucos dias antes da minha aventura na terra da vida-ou-morte.

Lou Reed morreu no fim de 2013, quando “Berlin” ainda não tinha caído nas minhas mãos e eu conhecia ele ainda como o muso do rock do Velvet Underground. Só depois de “Berlin” que vivo esse luto também, um pouco cada vez que escuto o disco, uma tristeza fria e raivosa de ter me apaixonado tanto por ele, que viveu contemporâneo a mim por tanto tempo, só depois de ele morrer e eu precisar abrir mão de qualquer esperança de algum dia vê-lo ao vivo. Sempre fui arrasada pelas experiências que fugiram de mim correndo e eu nunca mais poderia alcançar.

Em Gilead, todas as experiências morrem para que a humanidade não morra.

De onde vem essa obsessão em deixar algo para além da morte, em ser lembrado, em manter a raça humana viva? O instinto de sobrevivência, nosso traço mais animal, mesmo confundido com o cuidado da prole, faz parte do nosso comportamento como ser humano. Esse apego pela vida é parte da nossa existência, assim como a curiosidade pelo que acontece quando morremos. Existe um céu ou um inferno?

É nossa incapacidade em lidar com o fim da nossa existência que nos transforma em animais atrás de uma reprodução cega? Em algum momento deixaremos de existir e, filhos ou não, lembrados ou não, amados, odiados, esquecidos, nada disso fará parte da nossa consciência. De que importa o que acontece depois que morremos? De que importa se existirá mundo, civilizações, ou pessoas, se a tecnologia vai avançar tanto a ponto de criarmos carros que voam ou se todas as obras de arte do Louvre vão deteriorar e desaparecer, comidas pelo tempo?

Que joguem minhas cinzas no lixo, no mar, no chão. Se não existimos, não existimos. Por que é tão normal que se busque a continuidade eterna da nossa espécie?

Eu deveria entender isso. Ser mulher é sobre ser mãe, um refrão que desde pequena escutamos. Meu útero inexistente, nem mais estéril, é inútil nessa sociedade em que ser mãe é a maior dádiva e obrigação, em que até o filho não quisto, não planejado e não consentido é obrigado a nascer e se criar.

Em um país em que o aborto é crime, a esterilidade é cúmplice.

Me contaram que, quando nasci, minha bisavó de seis sobrenomes, supostamente de uma linhagem de condessas francesas, olhou para o meu pai e disse, com carinho, que ele ainda teria um filho para carregar o nome da família. Ela tinha razão: nenhum nome seria eternizado pelo meu ventre, e a flor com meu nome na árvore genealógica da família acabaria em mim.

No mundo fictício de “O Conto da Aia”, existências inteiras são destruídas por essa obsessão por continuar a linhagem. A desumanização das aias é completa, invadindo até suas roupas: um uniforme vermelho com um chapéu de abas que as impedem de ver o que há em volta. A câmera da série também, em closes fechadíssimos, gerando no expectador a mesma ansiedade pelo entorno que a visão periférica da personagem não permite que ela enxergue e que a diretora, inteligentíssima, nos rouba.

A história evolui com ecos de revolução e resistência, e o reconhecimento de que é fútil tentar separar o pessoal do político. Carol Hanish tenta nos avisar isso há décadas. Aos poucos, com a voz roubada, June aprende a usar o silêncio como arma, e é ele a bomba que cai sobre a sua família nos minutos finais da série. No livro, ela é menos revolucionária, e mais testemunha.

Mas essa não é uma história sobre resistência, sobre mulheres, ou sobre ficção científica. É sobre horror. Ainda pior quando Margaret Atwood declara para o New York Times que uma de suas regras era apenas utilizar eventos que tivessem acontecido na história. “Nada de leis ou atrocidades inventadas. Deus está nos detalhes, eles dizem. O diabo também”.

Leio relato atrás de relato de amigas comovidas, ultrajadas, raivosas, nervosas com o que acabaram de assistir. E se isso acontecer?

Mas já acontece.

Mais de 700 milhões de mulheres estão em casamentos forçados que aconteceram antes que completassem 18 anos, e 250 milhões delas casaram antes dos 15. Duzentos milhões de meninas em 30 países diferentes tiveram, assim como a personagem de Alexis Bledel, o clitóris arrancado.

No Líbano, estupro marital é considerado um direito, e no Iêmen mulheres não podem sair de casa sem a permissão do marido. A pornografia no mundo inteiro é mais uma forma de estupro institucionalizado, disponível a um clique do mouse para a punheta do homem mais próximo.

A Chechênia cria campos de concentração para gays, traidores do gênero na nomenclatura de Atwood. Na Argélia e na Tunísia estupradores podem escapar do julgamento se casarem com as vítimas, e no Marrocos e na Arábia Saudita as vítimas de estupro podem ser processadas pelo crime. Ainda nesse último, mulheres precisam de permissão do seu guardião homem para casar, se divorciar, estudar, trabalhar, e até mesmo ter uma conta no banco. Elas são proibidas de votar e dirigir.

O Estado Islâmico faz rituais religiosos, com orações, antes estuprar as mulheres Yazidi da Síria e da Turquia, escravizadas para que possam engravidar e parir crianças que serão criadas como soldados da causa.

E, assim como na história, elas tentam fugir. Fogem para o que tem mais perto: a Europa. Na Alemanha, estima-se que existam 25 mil mulheres Yazidi. Só que, diferentemente de quando vemos na série, em vez de ficarmos emocionados e torcendo pela personagem, queremos expulsar os refugiados.

Desde o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, os números de refugiados acolhidos no Brasil têm diminuído, embora o número de pedidos aumente. Em um país em que políticos como Jair Bolsonaro, uma encarnação perfeita do poder da série, têm espaço, não é difícil entender os motivos.

Basta uma crise política, econômica e religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados. E não sou eu que estou dizendo, é a Simone de Beauvoir.

Apesar disso, ainda podemos resistir.

Ainda.

Porque a história se repete.

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