A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Lendo as 240 páginas de “Meu ano de sono e relaxamento” com insônia

Nova York, começo dos anos 2000, e uma linda menina rica que só quer dormir. Conheça o livro mais recente de Ottessa Moshfegh

Lendo as 240 páginas de “Meu ano de sono e relaxamento” com insônia
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O gosto estranho de cereja invade minha boca quando começo a ler Meu ano de sono e relaxamento, livro mais recente de Ottessa Moshfegh. O gosto é culpa do Patz, versão sublingual do hipnótico indutor do sono cujo nome genérico é Zolpidem. Seus outros nomes comerciais incluem Stillnox ou, como a protagonista prefere chamar, Ambien. Tomamos juntas o remédio enquanto buscamos dormir e, ironicamente, li as 240 páginas do livro entre o limbo da insônia.

Reminiscente de Cecily von Ziegesar, autora dos livros em que a série Gossip Girl foi inspirada, Moshfegh também nos traz uma Nova York no começo dos anos 2000 e uma protagonista linda, loira, magra e rica. Serena van der Woodsen? Mas, ao contrário da série, a riqueza, a beleza e a magreza não são o tema da história – talvez o cenário. (E antes de descartar Ziegesar com desprezo, cabe a nota de que os livros foram elogiados por críticos de calibre como Janet Malcolm.)

Mas, ao contrário dos clássicos sobre esse estilo de vida (podemos citar ainda Hell de Lolita Pille ou How to murder your life de Cat Marnell), a protagonista de Moshfegh não tem grandes ambições para a vida e nem vive um tédio milionário afogada em drogas, festas e sexo em uma busca por “sentir algo”. Sua principal ambição é simples, ingênua até: dormir, hibernar por um ano inteiro, e acordar renovada.

(Foto: Wikimedia Commons)

Na sua nova versão, a infância sem afeto, a morte do pai (câncer) e da mãe (suicídio) não importariam. E o ano de sono e relaxamento também seria o ano do luto, cujo trabalho emocional ela deixa inteiramente para o inconsciente. A narrativa de Moshfegh foge de digressões reflexivas e existencialistas sobre a condição humana, e também não dá muita atenção a uma lição de moral panfletária sobre o vazio da riqueza sem amor. Ele flui como um filme de Sofia Coppola – ou como as sensações da protagonista: dia após dia, um igual ao outro.

Mas é o humor sua melhor parte: quando a protagonista coloca a foto da melhor amiga no espelho, é para se lembrar de não telefoná-la. Dos nomes de remédios inventados até situações tragicamente cômicas, como a mãe contando que esmagou Xanax e colocou na mamadeira da filha para acalmá-la, Moshfegh desnuda o humor no desespero egocêntrico da protagonista. Enquanto seu interesse romântico tem claras tendências de estupro, ela responde que prefere mil vezes Trevor a esses nerds hipsters que lêem David Foster Wallace e se masturbam pra Chloë Sevigny. “Trevor provavelmente se masturba para Britney Spears”, ela explica.

O romance é sufocante, cáustico, mas ingênuo ao mesmo tempo. Sua estética não vive na forma de aliterações ou prosa poética, mas nas referências artísticas e na forma como o tema do que é belo e horrendo perpassa a história, pela voz da protagonista, de sua amiga Reva que incansavelmente busca a perfeição, e do artista pseudo-revolucionário Ping Xi. O que é arte, afinal?

Moshfegh é, segundo a New Yorker, “a mais interessante escritora contemporânea dos EUA sobre o tema de estar vivo quando estar vivo é horrível”. Mesmo com o final previsível que pode acontecer em uma leitura em retrospecto histórico, Meu ano de descanso e relaxamento é sensacional. Mas, bom, agora meu Ambien já começou a fazer efeito.

SERVIÇO:

“Meu ano de sono e relaxamento”, Ottessa Moshfegh

Todavia Livros, 2019

Tradução de Juliana Cunha

240 páginas

54,90 reais

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