A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Felipe Castilho: “Não existe como desassociar arte de revolução”

Entrevista com o autor da série de fantasia “Ordem Vermelha”, que já ficou várias semanas na lista de mais vendidos

Seu livro “Ordem Vermelha”, o primeiro volume da série “Filhos da Degradação”, ficou por várias semanas na lista de mais vendidos
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Felipe Castilho é um sucesso. Seu livro “Ordem Vermelha”, o primeiro volume da série “Filhos da Degradação”, ficou por várias semanas na lista de mais vendidos. Faz sentido: uma história de fantasia de alta qualidade com metáforas e analogias poderosas sobre estruturas políticas do nosso mundo real, com uma narrativa fluida e cliffhangers que prendem o leitor com facilidade.

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A série terá ainda mais um livro, que está em desenvolvimento, mas o autor admite que possam vir outras narrativas do universo que criou: “existe muita coisa pra ser explorada no passado de Untherak, ou quem sabe em outras regiões antes da Degradação tomar conta de tudo”, ele conta. Nós conversamos sobre seu livro, sua preferência por fantasia e o terreno da imaginação. Confira a entrevista completa a seguir.

ordemvermelha ORDEM VERMELHA: OS FILHOS DA DEGRADAÇÃO, de Felipe Castilho

Editora Intrínseca

448 páginas

R$44,90

 

 

 Como foi que você se descobriu escritor?

Com cerca de 8 anos escrevia livros e gibizinhos ilustrados por mim, primeiro por hobby e depois por sonho. Aos 16, fissurado com Agatha Christie e Tolkien, comecei a escrever um livro cyberpunk (nada a ver com nenhuma das duas coisas que estavam me empolgando) que ficou gigantesco e não ia para lugar algum – era BEM ruim. Foi ali, com um manuscrito (no sentido literal, feito à mão, mesmo) de 600 páginas e ainda incompleto que percebi que precisaria me dedicar e estudar a escrita se quisesse fazer algo significativo. Mas só publiquei o primeiro romance dez anos depois

CartaCapital: O que você diria pra quem tá começando?
Felipe Castilho: Nunca se acostumar com algo, seja com um método que você ache que funcione na tua escrita ou com elogio de alguém que o conforte. O que é bom hoje pode não ser mais amanhã, e se você lembrar-se disso sempre, pode ter certeza quer vai evitar várias decepções. A sua escrita é algo em eterna mutação, e isso envolve você – esteja sempre em movimento, não pare de ler, escrever e se envolver cada vez mais com o meio que te interessa.

CC: O que te atraiu pra fantasia? Como você vê o jogo metafórico entre a fantasia e os dramas que vivemos no “mundo real”?
FC: Acho que criei raízes na fantasia pela estética, seja como escritor ou como leitor: um livro, um filme ou um game nunca terminam na última página, na última cena, na última fase. Nós continuamos com a mente naqueles cenários de céus impossíveis, criaturas inimagináveis e raças diferentes. Continuamos sempre sonhando com o que acabamos de ver. Então, decidi que esses momentos de devaneio seriam direcionados pra mundos bem mais interessantes que o meu. Sempre foi importante pra mim “ruminar mentalmente” o que acabei de absorver, então esse processo com a fantasia e coma ficção científica sempre me fizeram um bem danado

CC: Como foi pensar nos nomes, nas raças, nas línguas?
Foi um desafio bacana, justamente porque não achei que escreveria um livro desse tipo antes dos meus 50 ou 60 anos. Mas adorei pensar nas coisas me afastando das fantasias mais eurocêntricas, por mais que a maioria das raças sejam já conhecidas do público através de outras histórias. Meu olhar estava muito mais voltado para a história do império otomano, bizantino, persa… Mas foi demais ver os primeiros personagens que o pessoal da CCXP gostaria que ganhassem uma história (de início, existiam Aelian, Ziggy, Harun, Raazi, Una e Proghon, desenhados pelo Rodrigo Bastos Didier) e depois povoar todo o mundo ao redor deles com novos personagens e criar o background.

CC: Você criou primeiro o enredo ou o universo?
Teve que ser algo ao mesmo tempo, até pela maneira com que eu fui envolvido no projeto. Eu fui chamado quando já existiam esboços de personagens (feitos pelo Rodrigo Bastos Didier e Victor Hugo Sousa) e a necessidade de se criar um universo. Então eu imaginei algo que uniria aquelas pessoas de raças diferentes, encontrei o ponto na narrativa onde encaixaria os vilões, e com isso a história de Untherak foi chegando em seguida. Após ter o plot geral definido, continuei colocando camadas na história de Untherak, mesmo que certos fatos jamais fossem aparecer na história. Eu queria me sentir integrado ao universo criado, e nada melhor que imaginar pormenores que acabam dando profundidade e amplitude no cenário em que vou passar tanto tempo.

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CC: Por que criar uma história de revolução? Você queria uma história de revolução e o resto veio depois ou a ideia da revolução surgiu conforme criava o universo?
FC: Conforme eu criava! Uma das coisas que o Érico Borgo e o Rodrigo haviam me dito na primeira reunião que tivemos era que aquela história deveria celebrar as formas de arte (Raazi mexe com pintura, Harun com esculturas, Ziggy com a música… e por aí vai). Ao meu ver não existe como desassociar arte de revolução, então eu trouxe isso logo de cara para o projeto.

CC: O livro é bastante politico. Pensando no cenário atual do mundo, qual é a mensagem que você gostaria de passar com a história?
FC: São muitas mensagens que eu adoraria ver cada pessoa pescando a que primeiro lhe saltasse aos olhos. Mas, em linhas gerais, eu gostaria de passar uma mensagem de igualdade e liberdade (bom, é uma história com muralhas gigantes, hahahaha).

CC: No universo fantástico que você criou, a cor vermelha é proibida. Essa escolha tem algo a ver com comunismo?
FC: Tem a ver com o sentimento de histeria e de teoria da conspiração que a classe média do Brasil tem com o comunismo. “Minha bandeira nunca será vermelha” e chavões do tipo são falas que você escutaria da boca de qualquer cidadão de Untherak, que cresceu pronto para odiar o que lhe diziam que era pra ser odiado, jogando tudo o que ele não conhece no balaio da esquerda; como se toda a esquerda fosse uma única entidade trabalhando em conjunto para destruir o Deus, a Pátria e a Família de quem vive em conforto porque sabe que está no topo. Enfim, de minha parte o livro tem uma grande alegoria para o momento atual da política brasileira, do resultado de se misturar política e religião, e o vermelho já é estabelecido um símbolo ancestral de perigo e transgressão. Aposto que o livro não soaria tão dramático se fosse batizado de Ordem Azul-Bebê.

CC: Eu escrevo também e muito vem de observação. Quando se escreve fantasia, a imaginação exerce um papel mais forte do que quando o mundo é “real”. Como você percebe isso no seu processo de escrita?
FC: Acho que aí entra um jogo de equilíbrio: dar forma à imaginação usando toda a sua observação do mundo real como matéria prima. A fantasia que é pensada sem compromisso algum com a realidade pode até ser divertida, mas carece de profundidade e de paralelos que conectem o leitor com aquela história – e o engraçado é que aí nesses casos, às vezes, é o leitor quem encontra significado onde às o escritor nem teve a intenção de colocar.

CC: “Ordem Vermelha” traz muitas personagens femininas incríveis – da deusa Una até a minha favorita, a Raazi. Como foi a construção dessas personagens?
FC: Foi bem cuidadosa e tive a leitura de muitas leitoras sensitivas, pois eu não queria cair em clichês e formas desrespeitosas – por mais que em algumas fantasias épicas ou históricas nós saibamos divisar o contexto, onde os homens imperam, fazem as mesmas merdas de sempre e tratam a mulher como procriadora. Mas foi um alívio desenvolver um mundo beirando o distópico e cheio de problemas, mas que não tem grandes problemas com casamento de pessoas do mesmo sexo e igualdade – e isso influi tanto no “lado do bem” quanto no “lado do mal”: a Tenente Sureyya é o flagelo de Una, que é a entidade suprema nesse universo. As grandes heroínas, ao meu ver, são Raazi, Yanisha e mais aquela outra que não posso falar senão seria spoiler (hahah). Untherak é um lugar horrível, ignorante e de governo totalitarista, mas ATÉ LÁ as coisas já evoluíram nesse sentido. Não é um lugar livre de preconceito e misoginia, mas não é a maioria da população que se comporta assim

CC: E, por fim, algo que eu adorei e quero saber por curiosidade pessoal: como foi desenvolver a questão entre o anão Harun e seu avô?
FC: Como escritor, foi uma das coisas mais divertidas que eu já fiz! Eu ficava MUITO feliz quando chegava nas partes do Bantu, adoro o jeito que ele xinga o neto (com carinho). Eu sempre imaginei o Harun como alguém que carrega um grande fardo, e não queria que fosse apenas a preocupação com a esposa e o filho. Os anões no universo da Ordem são os únicos que conseguem manter uma certa tradição oral, que acaba operando abaixo do radar de castração cultural de Una. Então, ele seria um personagem com uma dívida familiar, e queria que alguém de fato o cobrasse – mesmo que fosse ele mesmo. Lembro que quando comentei com amigos que faria ele aparecer como um fantasma muitas pessoas torceram o nariz, mas eu insisti – e na verdade era a coisa que eu mais sentiria se a editora me mandasse cortar. Eu queria que fosse essa coisa dúbia: Harun tem a saúde mental abalada ou simplesmente enxerga o fantasma do avô? Qualquer opção que o leitor escolher vai fazer a história andar muito bem.

 

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