A Redoma de Livros por Clarissa Wolff

Cinco lições de “Jogos Vorazes” para tempos difíceis

A distopia de Suzanne Collins revela verdades sobre o nosso mundo

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A trilogia “Jogos Vorazes”, de Suzanne Collins (Editora Rocco), conta a história de Katniss, uma habitante do 12º distrito de Panem. Lá, a Capital manda e os 12 distritos obedecem, e uma vez por ano os Jogos Vorazes acontecem: uma espécie de reality show em que um morador de cada distrito, chamada “tributo”, é enviado para uma arena onde todos lutam por sua vida. O sobrevivente e vencedor ganha dinheiro e glória. Apesar de se passar um mundo fantástico, a distopia traz algumas verdades parecidas demais com a nossa realidade.

1) O mundo é dividido em classes

A base da trilogia usa aquilo que Marx falou há muito tempo: o mundo é dividido em classes sociais. No universo de Collins, as classes são claras e bem divididas no formato de distritos – no nosso mundo, as coisas não são tão óbvias assim, embora a analogia siga perfeita. Os primeiros distritos, como o 1, o 2 e o 4, seriam as classes altas que não detêm os meios de produção: são ricos, podem desfrutar de uma vida boa, porém ainda precisam se dobrar à Capital. Como nossa classe média assalariada, acreditam em grande parte que são livres da dominação e que tudo que têm veio por mérito próprio: as amarras sociais são invisíveis a eles e o individualismo reina. Do outro lado do espectro, aos distritos 11 e 12 (as classes mais baixas) estão disponíveis para os trabalhos mais arriscados, que eles aceitam por precisar de comida para sobreviver. 

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2) O entretenimento e a alienação são uma arma poderosa

Para os cidadãos do Capital, os Jogos Vorazes nada mais são que um entretenimento como o Big Brother é para nós. Para o resto do distrito, o acompanhamento do programa é obrigatório e tem uma função parecida com os programas de “Quinze Milhões de Méritos” (o segundo episódio da primeira temporada de Black Mirror). Inserindo ideias de honra e da possibilidade de libertação, eles criam um sistema flexível o suficiente para permitir que alguns poucos indivíduos oprimidos consigam subir de nível, criando uma noção mentirosa de que só depende de você – assim como na nossa sociedade, em que gente como Oprah Winfrey e Barack Obama são utilizados com frequência como um argumento burro de que não existe mais racismo no mundo. Também se faz uso de propaganda política para uma demonização do extinto distrito 13, o único que foi contra o Capital e fez uma revolução.

3) A meritocracia é uma mentira

A Arena onde acontecem os jogos passa por uma premissa falsa: de que lá, todo mundo é igual lutando por sua própria vida. Seria o experimento perfeito para a meritocracia. Mas, assim como no mundo real, não é bem assim. Os distritos mais ricos criam suas crianças com treinamentos constantes para que eles se tornem tributos fortes e resistentes, chegando aos jogos com grandes possibilidades de vencer: por isso, para eles, os jogos são motivo de honra.

Já para os distritos mais pobres, que mal sobrevivem dentro do seu próprio mundo, ir para a Arena é uma sentença de morte. Por isso, as vantagens dos ricos sobre os pobres começam desde antes dos jogos. Lá dentro, se tornam ainda mais discrepantes: o jogo começa com uma Cornucópia onde estão armas, alimentos e muitas ferramentas úteis de sobrevivência para qualquer competidor, de forma que, quando chegam lá, os mais corajosos vão lutar pelos suprimentos. Os sem privilégios que quiserem garantir alguns desses bens são convidados a participar de uma batalha sangrenta da onde dificilmente sairão vivos. Caso virem as costas, estão abandonando qualquer chance de garantir um pouco da segurança fornecida pelos presentes da Cornucópia.

Isso mata a única vantagem dos distritos mais pobres: eles sabem sentir fome, eles sabem passar dias com restrição de água, comida, sono, conforto. Os Jogos Vorazes, que deviam ser jogos de sobrevivência, perdem a essência para quem garante todo o conforto proporcionado pelos presentes adquiridos. Como Rue e Katniss sabiamente concluem no primeiro livro, “o problema é que eles não estão famintos”. 

4) Quem manda no mundo é menos de 1% da população

O Capital detém os meios de produção e, por isso, é ele que manda no mundo. Os oito indivíduos mais ricos do mundo tem o equivalente de dinheiro do que 50% da população mais pobre – e isso não é um dado do livro, mas do mundo real. O resto de nós, mesmo quem metaforicamente participa dos distritos mais ricos, não têm nenhum poder. 

5) Se a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor

A frase de Paulo Freire encontra eco no fim da trilogia, quando se decide fazer uma última edição dos jogos com as crianças do Capital. Katniss, a protagonista, reflete: “Foi assim que aconteceu? Setenta e cinco anos atrás? Será que um grupo de pessoas sentou e votou para começar os Jogos Vorazes? Houve dissidência? Alguém pediu misericórdia e foi vencido pelo clamor pela morte das crianças dos distritos? (…) Todas aquelas pessoas que eu amo estão mortas e nós estamos discutindo os próximos Jogos Vorazes em uma tentativa de parar de desperdiçar vidas. Nada mudou. Nada vai mudar.” 

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