Em 2014, o New York Times fez uma reportagem sobre a chamada Geração Slash (barra, em inglês), referente aos jovens adultos millenials que têm mais de uma profissão ao mesmo tempo: jornalista/DJ, publicitário/modelo. Essa tendência comportamental é o resultado de diversas forças sociais e econômicas. Por um lado, os jovens adultos da minha geração precisam ter diferentes empregos e bicos para conseguir se sustentar. Por outro, existe um pensamento coletivo de que fazer a mesma coisa pro resto da vida não é o suficiente.
Faz sentido, especialmente para carreiras mais difíceis financeiramente, como qualquer uma do meio artístico. No ano passado, a Box1824 anunciou que isso também terminou: em uma era de pós-tudo (até pós-verdade), o pós-Slash também chegou. A barra é ineficaz em explicar as mudanças de carreira ou carreiras simultâneas que acontecem agora.
Se toda uma geração vive essa realidade – olhando pro lado só enxergo gente que se enquadra nessa categoria, eu incluída – é difícil entender completamente porque em determinadas situações esse tipo de atitude é vista com desconfiança ou até desprezo. Se de um lado temos médicos que são escritores (Moacyr Scliar) ou até jogadores de futebol (Sócrates), misturar duas ou mais atividades artísticas é visto com um pouco mais de desdém. A atriz que escreveu um livro ou o cantor que decidiu atuar são exemplos cotidianos desse fenômeno.
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Na geração pós-Slash, essa reação é exacerbada com qualquer um oriundo da internet. Até mesmo os defensores de livros de youtubers justificam a própria opinião com lógicas de que são o lucro desses livros que permite a publicação da chamada “boa literatura” em editoras.
Por um lado, livros de youtubers, assim como os livros de colorir, apesar de se adequarem ao suporte, não pertencem à categoria de que o suporte faz parte. Quer dizer: faz sentido que aquele conteúdo esteja em páginas, mas não faz sentido que seja chamado de literatura. Raquel Cozer, ex-editora da Planeta e atual editora da Intrínseca, falou em um episódio do Braincast que muitos desses livros poderiam ser considerados livros de fã: fotos, segredinhos, mini histórias da vida pessoal, desenhos e conselhos, ou seja, produtos adequados apenas a quem se interessa por detalhes desimportantes da vida de quem escreveu.
Por outro lado, mais e mais esse tipo de material não está se sustentando sozinho, o que leva youtubers com sérias intenções de escrita a ousarem criar outras coisas. Um exemplo disso é o livro de Raony Phillips, criador da série Girls in the house. Daniel Lameira, editor da Intrínseca, contou nesse mesmo podcast que o livro foi editado quase em tempo real: a cada capítulo terminado, o autor levava o conteúdo para os editores, lendo em voz alta com a voz da personagem e recebendo o feedback naquele momento. Outro exemplo é “Querido dane-se”, terceiro livro da maior youtuber do Brasil, Kéfera, e seu primeiro de ficção.
“Querido dane-se” segue a vida de Sara, uma jovem que, apesar de bastante empoderada (para usar a palavra que ela mesma usa para se descrever em diversas partes do livro), sempre sonhou em casar. Ao viver o fim inesperado de um namoro de anos, ela se encontra sozinha e obrigada a encarar, pela primeira vez, o quanto ela desconhece sobre a própria identidade.
Acompanhamos, pelas 200 páginas, a personagem se envolvendo com homens diferentes – alguns mais legais, outros bem menos – e tendo que lidar com a chefe nova, que ela adora, mas que é a nova namorada de seu ex.
O livro usa ferramentas narrativas bastante simples e até óbvias, o que é esperado de uma prosadora iniciante. Mas é esperado também que o livro não tenha ambições de obra-prima literária: ao contrário. Seguindo a tradição de escritoras como Meg Cabot (“O Diário da Princesa”), Sophie Kinsella (“Becky Bloom”), e mais recentemente Jojo Moyes (“Como eu era antes de você”), a história tem como único objetivo o entretenimento. E nisso é extremamente bem sucedido.
Mais: é uma história corajosa. Nela, Kéfera questiona estereótipos machistas, a forma como as relações românticas são estabelecidas atualmente, como o álcool e as drogas são muitas vezes usados como alívio mental de forma destruidora e muitos outros conceitos que devem ser questionados. A voz, em primeira pessoa, é jovem e real, com palavrões e coloquialidades que aproximam o leitor do diálogo de uma forma muito bem feita. Ponto pra ela.
Avaliar esse livro esperando um clássico literário expõe muito mais o erro do crítico do que da narrativa. O mais importante é, porém, avaliar como qualquer tentativa de intercâmbio entre fazeres artísticos é vista com preconceito: julgar que tipos diferentes de arte ou de entretenimento não convivem bem juntos é limitar o potencial de quem cria.
E, bom, até o Nobel deu o prêmio pro Dylan.
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