3ª Turma

“No caso do Júri, Moro está propondo a prisão em primeira instância”

Em entrevista à Carta, o defensor público Bruno Martinelli, explicou as mudanças do Pacote Anticrime em relação ao Tribunal do Júri.

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O Ministro da Justiça, Sérgio Moro, apresentou sua Proposta Anticrime como uma das metas prioritárias dos primeiros 100 dias de governo de Jair Bolsonaro. Prometendo combater à corrupção, às organizações criminosas e os crimes violentos, o Projeto prevê a modificação de 14 leis, algumas do Código Penal, outras do Código de Processo Penal e outras ainda do Código Eleitoral. 

Desde que o pacote foi apresentado, três pontos se destacaram nos meios de comunicação e nos debates da comunidade jurídica: a possibilidade de importação do modelo norte americano de acordos penais, plea bargain, a ampliação da legítima defesa e a redução da sua pena em caso de abuso, e a restrição dos regimes de progressão de pena.

No entanto, o Projeto também apresenta duas importantes modificações nas regras do Tribunal do Júri e para entender melhor o são essas mudanças, entrevistei o Defensor Público do Estado de São Paulo, Bruno Martinelli, que atua tanto na área criminal comum, como no Tribunal do Júri.

Igor Leone: No que se refere ao Tribunal do Júri, quais são as mudanças que o Pacote Anticrime apresenta?

Bruno Marinelli: Bom, vamos lá, basicamente o Sérgio Moro está propondo duas mudanças. A primeira é a possibilidade do réu ir a julgamento no Tribunal do Júri independentemente do recurso da pronúncia e segunda é tornar possível sua prisão imediata após o julgamento.

IL: Vamos por partes, sobre a possibilidade do réu ir a julgamento independentemente do recurso da pronúncia, o que isso significa?

BM: Para entender essa proposta eu preciso fazer uma breve explicação. O rito do júri tem duas etapas, a primeira funciona como um processo criminal comum, ocorre a denúncia, o réu é citado, responde à acusação e depois temos a audiência. No processo criminal comum tudo termina aí, com uma sentença.

Mas quando se trata do júri, existem 4 possibilidades, 4 decisões a serem tomadas. Ou o juiz impronuncia, quando não há indícios de autoria, ou desclassifica, quando não há a intenção homicida no caso, ou ele absolve sumariamente o réu, ou ele remete ao tribunal do júri. Essa última possibilidade é a decisão de pronúncia, que encerra a primeira fase do rito do júri e inaugura a segunda.

IL: Certo, se o juiz pronunciar o acusado, ele vai pro Tribunal do Júri.

BM: Exato. Hoje o Código estabelece que quando o juiz pronuncia e alguém recorrer dessa decisão – pode ser a defesa ou a acusação – a segunda etapa do rito não se realiza enquanto esse recurso não for julgado.

Se a defesa recorrer, significa que ela está pedindo ou a absolvição sumária, ou a desclassificação ou a impronúncia. Mas pode significar também que ela esteja pedindo a retirada das qualificadoras, alegando por exemplo que o motivo não foi torpe, fútil ou que não houve o emprego de algum meio cruel, como veneno, tortura, asfixia, etc.

A retirada de qualificadoras é algo importantíssimo para a defesa, porque o homicídio tem uma pena de 6 a 20 anos, com a qualificadora esse patamar sobe de 12 a 30 anos, portanto dobra a pena mínima e torna o crime hediondo.

IL: E o Moro quer que o julgamento pelo júri ocorra antes do julgamento deste recurso?

BM: Isso, no Projeto ele diz que o recurso da pronúncia não terá efeito suspensivo. Então é como se ele retirasse o duplo grau de jurisdição.

Agora imagina que a defesa está alegando no recurso que o motivo não foi fútil, por exemplo. E antes dessa decisão sair, o julgamento no tribunal do júri ocorre e os jurados entendem que existiu a qualificadora e o réu é condenado a 12 anos de prisão.

Imagine então que depois dessa decisão dos jurados, o Tribunal dá provimento ao recurso da defesa e retira a qualificadora.

IL: Entendi, o júri pode condenar a uma pena muito maior antes do Tribunal dizer que o patamar da pena mínima não poderia ser aquele.

BM: A decisão de pronúncia é uma espécie de filtro pro júri, ela que decide os limites cognitivos do que vai ser levado aos jurados. O Projeto coloca esse filtro depois da própria decisão dos jurados, é uma completa incompatibilidade lógica.

E pior, o Projeto não resolve esse problema, ele mantém essa incompatibilidade.

Ministro Sérgio Moro durante apresentação do Pacote Anticrime para governadores e secretários de segurança.

IL: Esse absurdo é uma das alterações do Pacote Anticrime pro Tribunal do Júri, e qual é a outra?

BM: A outra proposta é para que a sentença do júri comece a ser cumprida já na sequência.

Vamos imaginar novamente um exemplo. Um réu é condenado pelo júri, contra essa decisão cabe a apelação. E na apelação a defesa argumenta que o júri reconheceu uma qualificadora que não existia, o Projeto fala que esse recurso não terá efeito suspensivo, o que significa que a decisão já pode ser cumprida.

Sérgio Moro está propondo isso em um contexto em que o Supremo ainda está decidindo pela possibilidade ou não de prisão após o julgamento pelo Tribunal em segunda instância.

No caso do júri a situação é ainda pior, porque aqui você está discutindo a possibilidade de prisão após o julgamento em primeiro grau. 

E o pior é que ele usa a soberania dos veredictos como fundamento para essa proposta. Veja, a soberania dos veredictos é na verdade uma garantia dos acusados, algo que não pode ser usado contra eles. Você simplesmente não pode usar um direito fundamental, para violar outro direito fundamental.

IL: Nossa, essa proposta então consegue ser ainda mais absurda que a própria prisão em segunda instância.

BM: Você só pode ter uma prisão a título de cumprimento de pena, não só antes do trânsito em julgado, mas antes também da decisão do Tribunal, ou seja, da segunda instância.

No caso do Júri, Moro está propondo a prisão em primeira instância, sem trânsito em julgado e sem que o Tribunal tenha julgado o recurso de apelação.

Recentemente eu vi que o IBCCRIM publicou uma nota técnica mostrando um estudo realizado no Rio Grande do Sul, analisando 100 recursos em sentido estrito, esse que é contra a pronúncia.

Em 55% dos casos o recurso foi acolhido, alterando o conteúdo da decisão tomada em primeira instância. Isso é muito revelador, é preciso ter em mente que o índice de reversão é muito maior no júri. Até mesmo o índice de absolvição é muito maior.

 IL: Por mais que essas duas propostas sejam absurdas, você consegue imaginar qual foi o raciocínio do Moro quando ele pensou nelas?

BM: Consigo imaginar sim, o Projeto dele parte da seguinte ideia: uma vez que demora um tempo entre a decisão de pronúncia e o julgamento no tribunal do júri, o réu pode ficar solto.

E o Projeto entende que pode existir um risco desse sujeito praticar novos crimes, outros homicídios. Mas isso que é uma hipótese paranóica. Porque se de fato existir esse risco, ele pode ser preso preventivamente. Como já é hoje em dia.

Então o Projeto trabalha nessa hipótese paranóica, mesmo no caso de não existirem provas de que o réu possa cometer novos crimes, ele já é levado ao tribunal do júri para antecipar sua condenação.

É uma forma de satisfazer a hipótese paranóica midiaticamente vendida.

IL: E ainda por cima é uma medida que não tem impacto nenhum na redução da criminalidade.

BM: Absolutamente nenhum.

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