3ª Turma

Lula, a cachaça e o preconceito de classe

Ninguém acusa alguém de ser uísqueiro ou vodkeiro. Cachaceiro, sim. Cachaça é bebida de pobre, acessível à maioria das pessoas

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Em 2004, o ex-presidente Lula se envolveu em uma polêmica com o jornalista Larry Rohter, correspondente do New York Times no Brasil.

Lula sempre foi apontado por seus detratores como alguém que gosta de beber. A cachaça, obviamente, aparece como a bebida alcóolica pela qual o ex-presidente nutriria maior apreço.

Não são poucos os que, em tom inquisitório, costumam acusar Lula de cachaceiro. Rohter de alguma maneira se sentiu atraído por essa coisa de atacar uma pessoa pública por meio de conjecturas sobre sua vida privada. Tanto que escreveu no NYT que o ex-mandatário “nunca escondeu seu apreço por um copo de cerveja, uma dose de uísque ou, melhor, um trago de cachaça, o potente aguardente do Brasil”.

A mensagem que Rohter procura passar no artigo é a de que Lula não só seria um alcoólatra com predileção pela cachaça, mas que isso estaria “afetando sua atuação no governo”, muito embora, na mesma ocasião, o próprio jornalista indicasse o caráter anedótico do alcoolismo do ex-presidente: “se Lula tem realmente ou não um problema com bebidas, a questão penetrou na consciência popular e se tornou motivo de piada”.

Rohter cita também o todo poderoso Ali Kamel, então colunista do O Globo, segundo o qual qualquer um que já tenha estado em recepções formais ou informais em Brasília testemunhou presidentes bebericando doses de uísque. Mas sobre o fato nada leu a respeito dos outros presidentes, somente de Lula, o que lhe cheira a preconceito.

Na entrevista que deu na semana passada aos jornalistas Florestan Fernandes Jr e Mônica Bérgamo, Lula fez questão de destacar que é o ex-presidente mais bem avaliado da história – transformando em perfumaria as preocupações de Rohter com o que fazia ou deixava de fazer em sua vida privada. Na mesma entrevista, Lula falou que o Brasil é governado por um bando de malucos. Jair de pronto respondeu: pelo menos não é por um bando de cachaceiros.

Há uma questão interessante sobre as preocupações tanto de Jair como de Rohter sobre o que Lula bebe ou deixa de beber. Para quem comunga da posição de fiscal de alfândega etílica, o problema não está no consumo exagerado de uísque, vodka ou cerveja. Está no de cachaça, que se tornou uma espécie de metonímia pejorativa quando se quer ofender alguém.

A explicação para isso, por mais incrível que possa parecer, vem de um cirúrgico Ali Kamel: trata-se de preconceito. Puro preconceito de classe, a propósito.

Ninguém acusa alguém de ser uísqueiro ou vodkeiro. Tampouco de alcoólatra. Cachaceiro, sim, pois remete a características como desleixo, vagabundagem e irresponsabilidade, historicamente dirigidas às classes populares, situando-se fora da redoma semântica de quem tem dinheiro para comprar uma garrafa de Blue Label.

Cachaça é bebida de pobre, de brasileiro, acessível à maioria das pessoas. É bebida de pedreiro, de motorista de ônibus; bebida de agricultor, gari, estivador, mecânico, ASG. De quem passa três, quatro horas por dia no transporte coletivo, trabalha oito e vê nela uma válvula de escape para uma vida onde não sobra dinheiro e o tempo que sobra é para dormir, ver televisão e tomar sua cachacinha. Pessoas cujos salários são menores que o preço do scotch importado isento de tributação que é servido nos convescotes de quem os acusa de cachaceiros.

Uma liderança identificada com o povo e com a classe trabalhadora como Lula não poderia jamais fugir do estigma de cachaceiro, como o próprio Rohter reconhece ao escrever que sindicatos são “um ambiente famoso pelo alto consumo de bebida”. Por mais discordâncias que possam existir entre o jornalista, Jair e FHC, por exemplo, não entra nos seus radares o uísque que o tucano bebe em seu apartamento em Higienópolis.

A preocupação com o que Lula bebe só encontra terreno fértil em Jair e na sua trupe de amalucados oriundos da pequena política. Na entrevista, o ex-presidente disse que, tão logo saia da prisão, irá tomar uma cachaça com as pessoas que se encontram no acampamento próximo à superintendência da Polícia Federal onde se encontra encarcerado.

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