3ª Turma

As origens do caos da Venezuela e a resistência chavista

Maduro demonstra extrema resiliência e conta com o apoio de nações como China, Rússia e Turquia para se manter no poder.

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A cada dia a crise na Venezuela se agrava e o desfecho fica ainda mais incerto. O presidente Nícolas Maduro marchou cercado de militares e ao lado do seu Ministro da Defesa, general Vladimir Padrino, no último dia 02 de maio, mostrou que as forças armadas estão do seu lado. Conclamando os sentimentos anti-imperialistas da resistência chavista, bradou Maduro:

“Chegou a hora de combater, de dar um exemplo à História e ao mundo e dizer que na Venezuela há uma força armada consequente, leal, unida como nunca e derrotando intentonas golpistas e traidores que se vendem aos dólares de Washington”.

A fracassada tentativa de golpe do autoproclamado presidente interino Juan Guaidó no dia do trabalho, foi apenas mais um capítulo dessa longa disputa pelo poder em uma das nações com as maiores reservas de petróleo do mundo, estratégica para os Estados Unidos e para o governo de Trump. O fracasso de tentativas socialistas anti-imperialistas também é de grande interesse do movimento global anti-marxista do qual Trump é o principal expoente, que também inclui Bolsonaro no Brasil, Viktor Orbán na Hungria, Matteo Salvini na Itália e outros.

Diante do exposto, cabe afirmar que tais acontecimentos decorrem de um processo que veio se constituindo a longo prazo, começando com a eleição de Hugo Chávez, em 1998, e a seguida tentativa de golpe em 2002. Seguindo-se até os dias atuais, desaguando nos fatos que a imprensa internacional vem noticiando, também de acordo com diferentes interesses políticos. Apesar disso, os autores deste texto questionam-se em relação, não só a como, mas o porquê da Venezuela estar imersa em tal crise.

Dentro do campo das possíveis justificativas, pode-se apontar como primeira delas, ironicamente, o próprio petróleo. A extrema dependência da commodity, haja vista que segundo Edgardo Lander, em paper escrito [1] para a TNI (The Transnational Institute), os recursos econômicos advindos do mesmo já representavam 96% da economia venezuelana, em 2014. Assim, o final do ciclo das commodities [2] poderia ser apresentado como um primeiro gatilho para o processo que vem se desenvolvendo desde então, já que o preço do barril de petróleo, no início de 2008, era de U$ 138 e hoje é cotado a uma média de U$ 62.

Um segundo argumento fica por conta da problemática enraizada nos países latino-americanos de forma geral: a corrupção [3]. Muitas verbas advindas dos lucros [4] da comercialização do petróleo tomaram rumo diferente de seu destino original, especialmente no que tange ao custeio de políticas públicas para populações carentes. Assim, a desigualdade foi aprofundada, ainda que Chávez tivesse desenvolvido programas sociais ou oferecido outros tipos de subvenções, tal como o Missão Moradia (espécie de Minha Casa, Minha Vida) ou o Favela Adentro (implementação de pequenos centros médicos em bairros carentes e afastados).

Pode-se apontar como terceiro argumento a centralização do poder na figura do Chefe do Executivo, limitando, assim, a participação de outros setores da sociedade civil. Isso é característica comum de governos que intervém de forma contundente na organização do Estado [5], no bojo do hiperpresidencialismo típico da América Latina. Tal fato, assim como ocorreu na Era Vargas [6], desencadeou um processo de autoritarismo e arbitrariedades, ao culminar na atual tentativa de golpe realizada por Guaidó com o apoio dos opositores do chavismo.

Como quarto argumento, pode-se apontar a desestabilização política causada pelos embargos econômicos promovidos pelo governo norte-americano. Nesse sentido, segundo o relatório [7] publicado pelo Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (CELAG), em 8 de fevereiro de 2019, entre 2013 e 2017, a Venezuela perdeu, aproximadamente 3 milhões de postos de trabalho, o que compreende 24% da população total economicamente ativa. Além disso, o mesmo também afirma que o Estado teve prejuízo, no mesmo período, de aproximadamente 350 bilhões de dólares. Isso expõe a problemática disso tornar-se um sistema que se auto-alimenta, haja vista que não há empregos, logo, não há consumo e, por fim, a economia não se movimenta com vistas à saída da crise.

Jair Bolsonaro em encontro no Brasil com Juan Guaidó

Ao impor o estrangulamento econômico venezuelano por meio dos embargos econômicos e boicotes, os EUA, sob o governo Trump, adota a mesma estratégia usada desde o século passado em relação à ilha cubana e mais recentemente a Rússia. Por controlar grande parte do sistema financeiro mundial, os norte-americanos conseguem impor restrições não apenas a captação de capital no mercado externo via venda de títulos da dívida pública, mas também limita o número de parceiros econômicos venezuelanos, ao proibir que aliados comercializem com a nação de Símon Bolívar, seja comprando seu petróleo ou exportando medicamentos e itens básicos.

A já vetusta, não obstante sempre atual Teoria da Dependência formulado por autores brasileiros como Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra, é capaz de nos trazer elementos que explicam esse problema crônico de boa parte das economias latino-americanas. Por não terem alcançado o seu desenvolvimento econômico pleno, ainda se veem sujeitas a importação de bens de consumo duráveis e não duráveis, desde de medicamentos e papel higiênico a eletrodomésticos e automóveis.

Tal fenômeno decorre da inserção tardia da América Latina no sistema capitalista, mantendo a histórica divisão internacional do trabalho e seu papel de mero fornecedor de matérias primas.

Nada obstante, o radicalismo do socialismo do século XXI de Hugo Chávez e o rompimento deste com a burguesia industrial venezuelana levou a um profundo processo de desindustrialização, em decorrência da desconfiança do setor produtivo venezuelano e de outras multinacionais em relação à política econômica chavista. A nacionalização e a expropriação de diversos setores da economia levaram a fuga de diversas empresas e indústrias do país, forçando o governo a ter que importar cada vez mais.

A forma como vem se desenvolvendo a crise na Venezuela é fruto do que se pode chamar de pós-democracia, nas palavras de Colin Crouch [8]. Tal categoria tem como objetivo descrever como os aparatos legalmente constituídos podem ser cooptados para o benefício de pequenos grupos sociais e a manutenção da perspectiva anti-democrática.

Para este texto, toma-se como exemplo a nomeação de militares em substituição ao corpo técnico da PDVSA (Petróleos de Venezuela), estatal que monopoliza e gere a exploração do petróleo no país, o que dificultou o investimento em tecnologia e melhorias. Ademais, no que tange ao Estado em si, pode-se apresentar como marco a convocação realizada por Maduro para que se redigisse uma nova Constituição, no ano de 2017, conforme noticiado pelo O Globo e pela CartaCapital. O que revela inegáveis rasgos autoritários do presidente chavista.

O fim da crise aparentemente não está próximo, apesar do recrudescimento das investidas opositoras, com as tentativas de cooptação de setores desertores das forças armadas e das ameaças de guerra, da parte dos EUA e do Grupo de Lima (Formado em 8 de agosto de 2017, e integrado por: Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai e Peru, além dos representantes dos EUA. O grupo tem se reunido na capital peruana para debater a crise venezuelana, sendo críticos do chavismo).

Por outro lado, Maduro demonstra extrema resiliência e conta com o apoio de nações como China, Rússia e Turquia para se manter no poder. Nessa crise profunda já não existem heróis, culpados ou inocentes. Por outro lado, quem mais sofre são os venezuelanos. Aguardemos os próximos capítulos.

Referências:

[1] Conforme os termos do autor, utilizando os dados disponibilizados pelo Banco Central da Venezuela, o mesmo apresenta: “(…) Oil’s share of total export value rose from 68.7% in 1998 to 96% in the last few years.”. Para mais informações, consultar: LANDER, Edgardo. Venezuela: terminal crisis of the rentier petro-state model? 2014. Disponível em: <https://www.tni.org/files/download/venezuela_terminal_crisis_of_the_rentier_petrostate_model._with_very_minor_chaanges_0.pdf> Acesso em 10 mai 2019.

[2] O fim dos ciclos das commodities foi observado a partir da desaceleração econômica chinesa no início da segunda década do século XXI e a consequente diminuição da demanda por matéria-prima latino-americana, o que também fora sentido pelo Brasil.

[3] De acordo com o Corruption Perception Index, índice produzido pela ONG Transparência Internacional, no ano de 2017, a Venezuela ocupou a posição 168 do total de 180 países analisados, obtendo 18 pontos. O país superou pares como Brasil (37 pontos), México (29 pontos) e Haiti (22 pontos) e, segundo os dados da pesquisa, o Estado figura com o mais corrupto da América Latina. Disponível em: <https://www.transparency.org/news/feature/corruption_perceptions_index_2017#table> Acesso em 10 mai 2019.  

[4] Estima-se que a Venezuela, em 2017, a exportação de petróleo cru (Crude Oil) representou 79,8% (U$ 22.2 bilhões) das exportações totais do país, seguido pelos petrolíferos refinados, no total de 10, 3% (U$ 2.86 bilhões). Por outro lado, em 2012, o valor exportado de petróleo cru foi da monta de U$ 153 bilhões, tendo decréscimo de 22,2% no período em análise, conforme dados do OEC (The Observatory of Economic Complexity). Disponível em: <https://atlas.media.mit.edu/pt/profile/country/ven/> Acesso em 10 mai 2019.

[5] O Estado autoritário de Hitler concentrava as competências na mão do líder alemão, sendo construído sobre os pilares da constituição social de Weimar, de 1919. Tal fato é reflexo do constitucionalismo social, o qual demandava maior intervenção do Estado na economia, com vistas à compensação da crise de direitos sociais desencadeada pela Segunda Revolução Industrial.

[6] Conforme a Constituição desenvolvida por Francisco Campos, Ministro da Justiça de Vargas, a Carta de 37 concentrava a maior parte das competências na mão do Chefe do Executivo. Pela perspectiva político-administrativa, era dotada de caráter centralizador, como atribuição designada ao Presidente da República para a nomeação de interventores estaduais e estes, por sua vez, de nomear autoridades municipais.  

[7] Disponível em: <https://www.celag.org/las-consecuencias-economicas-del-boicot-venezuela/> Acesso em 10 mai 2019.

[8] Na visão do autor inglês, a democracia vem perdendo seus valores intrínsecos, em função da transferência das decisões políticas para pequenos grupos sociais, os quais não possuem legitimidade. Contudo, tal fato estaria ocorrendo ainda que as instituições democráticas ainda estejam em “pleno funcionamento”. Isso pode ser percebido pela última eleição na Venezuela, que seguiu o rito legal previsto, bem como contou com a participação de observadores internacionais, embora Maduro tenha sido eleito com 67,7% dos votos válidos, ainda que sob alegações de fraude.

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