3ª Turma

A morte programada do Trabalhador Rural por Bolsonaro: ponto a ponto

A política do Capitão para o trabalhador do campo ataca as principais garantias constitucionais da população rural.

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Sabia perfeitamente que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e aguentavam cipó de boi oferecia consolações: “Tenha paciência. Apanhar do governo não é desfeita.” – Graciliano Ramos, Vidas Secas.

Não tão distante das confusas, mal redigidas e apressadas Medidas Provisórias editadas pelo Circo de Horrores que chamamos Governo Federal nos últimos meses, a Proposta de Emenda à Constituição n° 06/2019 traduz o plano de desmonte dos mecanismos de proteção do caráter solidário, humano e democrático da Seguridade Social.

A política do Capitão para o trabalhador do campo ataca as principais garantias constitucionais da população rural, sobretudo das mulheres que terão a idade equiparada à dos homens para fins de concessão do benefício de Aposentadoria.

Diante do cenário socioeconômico internacional de esgotamento do sistema de produção capitalista, os representantes do mercado financeiro e do capital estrangeiro, em um movimento nocivo a soberania brasileira, pressionam a aprovação da dita Reforma que na propaganda fará “o pobre pagar menos e o rico pagar mais”, quando é um instrumento de agudização das desigualdades social e extermínio da classe empobrecida.

A identificação do anúncio dessa tendência regressiva no campo da proteção social será muito importante para compreendermos as diretrizes da PEC n. 06/2019, que pode ser apontada como o extremo dessa nova rodada de supressão de direitos previdenciários, que remota a promulgação da Lei n. 13.457/2017 (fruto da MP n. 767/2017 editada pelo Governo Temer, com vetos) e, recentemente, pela MP n. 871/2019, responsáveis, respectivamente, por instituir e ampliar o Programa Especial de Revisão de Benefícios “com suspeitas de irregularidade”, o popularmente conhecido “pente fino”, sobre o qual pesam sérias denúncias e críticas.

Para então compreender as razões pela escolha do ataque ao paradigma da proteção social aos segurados especiais rurais é preciso identificar quem são esses indivíduos.

Da leitura do art. 11, inciso VII, da Lei n. 8.213/91, descobrimos que segurados especiais são os pequenos produtores rurais, pescadores artesanais e extrativistas, bem como seus cônjuges ou companheiros e os filhos maiores de 16 anos que trabalhem em regime de economia familiar, legalmente compreendido como aquele em que “o trabalho dos membros da família é indispensável à própria subsistência e ao desenvolvimento socioeconômico do núcleo familiar e é exercido em condições de mútua dependência e colaboração, sem a utilização de empregados permanentes” (art. 11, §1º da lei n. 8.213/91).

Nesse sentido, de acordo com os dados do Censo Agropecuário 2006, 12,3 milhões de pessoas estavam vinculadas a agricultura familiar, sendo que 90% delas mantém laços de parentesco com o produtor – “a união dos esforços em torno de um empreendimento comum é uma característica importante da agricultura familiar” – salientando-se que dos 11 milhões de pessoas ocupadas na agricultura familiar e com laços de parentesco com o produtor, 8,9 milhões residiam no próprio estabelecimento (81%).

A esta população que vive da agricultura familiar, por força da atual redação do artigo 194, parágrafo único, incisos II e V da c/c art. 201, §1º, ambos da Constituição Federal, é garantida a “uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais” a “equidade na forma de participação no custeio”, bem como é vedada a “adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social.”

Tais conquistas, pactuadas no momento de redemocratização da nação, na PEC são substituídas por comandos excludentes e restritivos, como: a vedação do cômputo do tempo ficto; a ausência de forma de cálculo para a concessão da aposentadoria rural, com a fixação do valor do benefício em um salário mínimo, independentemente da forma e da quantia custeada ao sistema previdenciário; a impossibilidade de conversão entre o tempo especial (rural) em tempo comum (urbano) após a promulgação da PEC e a instituição de uma contribuição anual obrigatória ao grupo familiar rural.

Seguramente não foi sob lema de “acabar com os privilégios” que o Palácio do Planalto retirou a equivalência entre as populações urbanas e rurais na forma de custeio e na percepção de benefícios previdenciários.

Ainda, a proteção social diferenciada concedida às famílias camponesas é um importante instrumento de combate à pobreza e incentivo à sua permanência no campo, a fixação do valor das aposentadorias rurais em 1 (um) salário mínimo, além do aumento no requisito de idade as mulheres do campo representa uma  ameaça a essa conquista civilizatória da Constituição Federal de 1988.

Isto sem mencionar que o movimento de êxodo rural datado do final do século XX ainda repercute na dinâmica social brasileira. Uma parcela subnotificada e, ao que nos leva a crer a observação antropologia e demografia, considerável da população têm sua vida produtiva e contributiva dividida entre o trabalho rural e o urbano, inclusive com o desenvolvimento de trabalho agrícola de subexistência em regime familiar na infância e adolescência.

Na proposta do Governo a estes trabalhadores será negado o direito ao cômputo dos períodos especiais rurais para fins de concessão de aposentadoria comum urbana, por exemplo. Na prática teremos situações invariavelmente injustas, como o caso de uma pessoa que trabalhou 10 (dez) anos em uma plantação de laranjas com sua família e 20 (vinte) anos como representante comercial de uma empresa na área urbana. Será justo afirmar que esta trabalhadora não conta com 30 (trinta) anos de contribuição? É razoável que o trabalho rural desta segurada não seja computado para fins de aposentadoria? Bolsonaro e sua trupe acham que sim. Os Tribunais Superiores discordam.

Em outro fronte, mas mesmo espírito de “caça às bruxas” que têm permeado os cortes na Educação, que o Presidente Jair Messias, ainda “surfando” na onda da Reforma Trabalhista, propõe ainda enfraquecer os movimentos sindicais e sociais e dificultar a comprovação do trabalho agrícola através da edição da já referida MP n° 871/2019 que indica em seus artigos 38, 38-A e 38-B a retirada da competência dos Sindicatos dos trabalhadores para emissão de declarações que comprovam a atividade rural, transferindo tal competência para o Ministério da Agricultura.

Essa transferência viola o entendimento do próprio ente previdenciário e da legislação federal. Os artigos 10, § 5, 36 e 39, § 1, da Instrução Normativa INSS 77/2015 e o artigo 106, inciso III da Lei n° 8.213/91 expressam a possibilidade de comprovação da atividade rurícola mediante apresentação de início de prova documental (declaração fundamentada do sindicato da classe, por exemplo), se confirmada por prova testemunhal.

Este entendimento é seguido pela jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores que entende, inclusive, que o rol de documentos hábeis a comprovação de atividade rural não é taxativo, podendo o trabalhador se valer de qualquer prova documental lícita para a comprovação do trabalho no campo.

Outro ponto controverso que certamente será alvo de críticas e propostas de emenda na Comissão Especial que analisa a PEC é a instituição da contribuição do rural. A nova redação §8º do art. 195 da CF proposta pela Reforma prevê a obrigatoriedade de pagamento de valor mínimo anual a título de contribuição previdenciária, ainda que ausente a comercialização da produção, para manutenção da qualidade de segurado e para o cômputo do tempo de contribuição e de carência do segurado e de seu grupo familiar.

Por sua vez, o art. 35 da PEC n. 06/2019 estipula que, até que entre em vigor a lei referida no §8º do art. 195 da CF, o valor mínimo anual de contribuição previdenciária do grupo familiar será de R$ 600,00, ou seja, R$ 50,00 por mês como obrigação imposta ao núcleo familiar do pequeno produtor rural, do pescador artesanal e do extrativista que, ademais, terão de efetuar essa contribuição por no mínimo 20 anos, além de atingirem a idade mínima de 60 anos, igualada para homens e mulheres, conforme previsto pelo art. 24, I e II, da PEC n. 06/2019.

A exigência de contribuição anual por parte dos segurados especiais demonstra, no mínimo, um completo desconhecimento ou, quiçá, um desprezo em relação à realidade da agricultura familiar no Brasil.

Segundo dados do Censo Agropecuário de 2006, apenas 69% dos produtores familiares declararam ter obtido alguma receita no seu estabelecimento durante o ano de 2006, o que significa que quase 1/3 da agricultura familiar declarou não ter obtido receita naquele ano. Ademais, entre aqueles que declararam ter obtido alguma receita decorrente da comercialização de seus produtos, a média era de R$ 13,6 mil, ou seja, pouco mais de R$ 1.000,00 por mês para custear todas as necessidades familiares não saciadas pela própria produção como, por exemplo, vestuário, medicamentos, itens de alimentação não produzidos no estabelecimento, etc., além da compra de insumos e equipamentos agrícolas e veterinários para dar continuidade à produção.

Em outras palavras, ao instituir contribuição pecuniária anual de R$ 600,00, aumentar o tempo de contribuição mínimo para acesso a uma aposentadoria de 15 para 20 anos e aumentar a idade mínima para acesso à aposentadoria em 05 anos para as mulheres camponesas – igualando-a a idade dos homens e, assim, desconsiderando, por completo, a realidade da dupla jornada feminina –, a proposta de reforma da previdência do Governo Bolsonaro parece pretender, na prática, excluir por completo as famílias dos pequenos produtores rurais, pescadores artesanais e extrativistas do âmbito da proteção previdenciária, sem se preocupar com as graves consequências sociais dessa medida, que vai na contramão do projeto constitucional de criação de um sistema de seguridade social da forma como proposto pelo art. 194 da CF, em sua redação original.

O chefe do Executivo se diz preocupado com a agenda do equilíbrio fiscal, mas ao se deparar com um país “ingovernável” prefere o avanço contra setores já marginalizados, como as populações rurais, os idosos e os deficientes do que enfrentar a necessidade de reforma nas pensões e aposentadorias dos militares, por exemplo.

Pelos dados fornecidos pelo próprio Governo Federal, as medidas adotadas na Reforma da Previdência dos Militares importariam em uma economia no período de 10 (dez) anos de R$ 97,3 bilhões de reais. No entanto, com a reestruturação da carreira militar e o reajuste nos soldos, o gasto do regime militar em uma década representaria R$ 86,8 bilhões de reais. Na comparação com a economia de R$ 1,2 trilhões de reais esperada com as mudanças nos regimes dos civis, em uma década, os militares terão economizado apenas R$ 10,5 bilhões aos cofres da União.

Aparentemente esse novo Brasil, que não é a Venezuela, pode virar um Chile.  

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