3ª Turma

A Defensoria Pública no espelho dos conflitos raciais

A Defensoria Pública não seria uma conquista do estado de bem-estar social? Sim e não.

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O primeiro grande desafio do profissional negro no cotidiano de atuação no sistema de justiça é o de estar fora do lugar que lhe foi destinado pela sociedade, eis que o inicial enfrentamento que nos deparamos quando do ingresso como membros do sistema é a sensação de deslocamento e de estranhamento, nem sempre consciente, a esse não lugar. Muito rapidamente iremos passar por uma situação em que não irão nos reconhecer, seja porque não vão nos ver em uma sala de audiências, por exemplo, ou porque seremos estranhados naquele lugar, ou ainda, de maneira mais sofisticada e recorrente, vão deslocar nossa negritude para uma branquitude subornada pelos benefícios da proximidade do poder.

Uma conceituação prévia se faz necessária a respeito do racismo institucional que pretendo abordar nesse texto, o qual vem a ser aquele resultante da composição e funcionamento das instituições, no particular, do sistema de justiça e precisamente da Defensoria Pública, no que isso importa na hegemonização por determinados grupos raciais dos mecanismos institucionais para fazer prevalecer interesses políticos e econômicos.

Mas aí talvez nos venha logo um questionamento: A Defensoria Pública pode estar atuando para a prevalência desses interesses sendo ela instituição vocacionada para tutela jurídica dos cidadãos vulneráveis? Infelizmente, não só pode, como do ponto de vista pragmático, ela está. Explico: não há nada de subversivo nesta afirmação, cuida-se apenas de constatar que a institucionalidade Defensoria Pública nasce de um processo de negociação, que é natural da organização institucional do estado.

No processo de tensões político-jurídicas, a Defensoria Pública é ao mesmo tempo uma conquista de movimentos democráticos pelo acesso à justiça, como também decorre de uma concessão vantajosa feita pelos segmentos hegemônicos de manutenção do poder.

É fruto de uma negociação “democrática” que visa sobretudo compor um sistema de controle seguro da depreciação econômica irracional que possa gerar uma instabilidade não desejada para o modelo político e socioeconômico.

Mas então, a Defensoria Pública não seria uma conquista do estado de bem-estar social? Sim e não. É enquanto modelo formal de institucionalidade, mas enquanto estrutura e dinâmica de atuação, ela é fruto de um refreio às insurgências irracionais e está atrelada ao sistema que metaboliza e absorve conflitos sociais.

Quando se compreende o racismo institucional para além de entender que ele opera no sentido de conferir institucionalmente, direta ou indiretamente, desvantagens e privilégios a partir da raça, percebe-se que ele também opera não menos eficientemente no sentido de reproduzir intra-institucionalmente conflitos a partir da raça, conflitos que se verticalizam por meio de normativas e por meio de microestruturas de contenção, conciliação e muitas vezes até de aniquilamento político.

Em meio a esses conflitos são soerguidas e editadas regras que vão compor um arcabouço de normas e práticas que vão guiar a instituição com avanços e retrocessos aqui e ali.

Há um processo constante de reclassificação dos mecanismos discriminatórios nessa dinâmica institucional. Em algumas instituições esse processo é mais lento, mais suave e em outras mais rápido, mais brusco e mais ostensivo, a depender da própria lógica de institucionalidade que está posta como vetor de racionalidade da respectiva instituição.

Observa-se assim que em instituições com viés de racionalização mais marcadamente conservadora haverá um processo de conflito mais contido, já naquelas em que a racionalização decorre de uma conquista mais sensível de movimentos sociais humanistas, em tese, há um processo de conflito mais intenso e com maior capacidade realizar fissuras hegemônicas. Logo, o processo intra-institucional de metabolização dos conflitos raciais no Poder Judiciário é um e na Defensoria Pública é outro e há ainda entre essas instituições conflitos não menos problemáticos.

O que pode ser dito de maneira mais direta é que todas as instituições do sistema de justiça – a Defensoria Pública, o Poder Judiciário, o Ministério Público – são racistas porque a sociedade é racista, mas isso não é menos verdade que o fato de que essas instituições atuam no palco de negociação desses conflitos raciais, tanto para ser parte do problema, como para ser um potente canal de negociação constante.

No meu não lugar conquistado no sistema, que é a Defensoria Pública, posso então começar a enfrentar esse debate a partir do reconhecimento de que a instituição é uma concessão das elites. Em um processo histórico que vem desde as ordenações filipinas entendeu-se que o estado tinha de absorver os conflitos inerentes ao fato de que os pobres não dispunham de instrumentos formais de defesa, o que colocava em risco a legitimidade e a estabilidade das decisões do grupo hegemômico.

Ainda que o avanço do processo democrático tenha alçado a Defensoria Pública a uma “instituição essencial à Justiça” e com exuberantes atribuições em favor dos “cidadãos” vulneráveis, isso não é menos verdade que se trata de uma concessão de risco controlado. Não por acaso, todas as prerrogativas da Defensoria Pública beiram ao poder, mas não são poder e que também se opere com a mesma lógica “meritocrática” das outras carreiras do sistema.

Isso é necessariamente ruim? Não, mas há nisso muito mais de investimento estratégico do que um genuíno reconhecimento dos direitos de proteção jurídica a um grupo vulnerável.

A estratégia consiste em colocar a Defensoria Pública em um patamar em que se tenha a falsa noção de pertencimento a uma esfera de poder que há muito está hegemonizada nas figuras do Poder Judiciário e do Ministério Público. É importante sobretudo que os seus integrantes se sintam parte dessa estrutura e se sintam atraídos por ela, pelo menos até serem absorvidos por uma outra esfera mais hegemônica como acontece, por exemplo, na migração para outras carreiras e que permanentemente outros indivíduos se sintam seduzidos a integrar a carreira nos moldes do desejo de fazer parte dessa estrutura elitizada.

Mesmo que se observe hoje um certo modismo da ideia de defensor “cult”, “hipster”, o que se percebe em alguns casos é apenas um processo que Bell Hooks nominou de “apropriação da outridade”, porque é no interior da estrutura, no relacionamento intra-institucional e entre as instituições do sistema, que ficam bem estabelecidas as distâncias de segurança entre o trabalho “cult” e a realidade das ações.

Mas o que acontece com os defensores negros? É ocioso dizer que há toda uma lógica de sub-representação. Por ser parte dessa institucionalidade racista e que só há pouco implantou a política de ações afirmativas, mesmo sendo uma instituição que há anos vem sendo demandada a garantir o direito às cotas para cidadãos negros vulneráveis e diga-se de passagem com muitos acertos, mas também desacertos que não contribuíram para a política, é obvio que a Defensoria Pública tem um número vergonhoso de negros na sua composição, e nos espaços de poder há um racismo evidente.

É possível contradizer que em algumas defensorias já existem negros na administração superior, até na chefia institucional e obviamente é muito bom que haja, mas tal fato não assegura uma lógica de funcionalidade antirracista, aliás, parafraseando Silvio Almeida, é uma prática um tanto eficiente manter alguns negros em espaços de poder sem que isso configure um compromisso com a criação de mecanismos institucionais efetivos de promoção da igualdade.

E não é menos verdade que se opera uma lógica de branqueamento, ou seja, o fato de um negro transitar em direção a um espaço de poder sem nenhum compromisso com efetivação da igualdade e de romper com obstáculos a isso, tende a levá-lo, tal como no espelho da sociedade, a se fazer racialmente “branco” do ponto de vista institucional.

Costumo conceituar raivosamente essas estratégias de “subornos raciais”, mas que na verdade se assemelham mais ao que Bell Hooks chama de um “racismo internalizado”, o que frequentemente resulta em nenhuma revolução em termos de representação racial.

Os estudiosos das questões raciais já sabem há muito tempo que a raça, como tecnologia, é uma questão de cor até página 7, num livro de 10, porquanto estratégias políticas podem redefinir formalmente as hierarquias sociais e fazer concessões vantajosas. Não por acaso quando comecei a trabalhar questões raciais no âmbito da Defensoria Pública não raras vezes não fui reconhecida por colegas próximos como negra, embora episódios violentos de racismo façam parte de toda minha história pessoal.

Esse texto não se propõe a um autoflagelo institucional retórico ou a alguma espécie de fogo amigo. É acima de tudo um exercício de autocrítica construtiva em direção a um caminho no qual a Defensoria Pública, meu não lugar conquistado, possa dar uma guinada de racionalidade que a permita operar como negociadora que desloque tanto quanto possível os pontos de privilégios sociais.

E trabalhar com a questão racial me fez compreender que isso não vai acontecer apenas com palavras de aclamação da função constitucional da Defensoria Pública, palavras vazias que já estamos fartos de falar e escutar.

E nem tampouco nos aproveita o “vitimismo”, do qual eu mesma já me vali várias vezes para persuadir concessões políticas à Defensoria Pública, tal como dizer que ela é o patinho feio do sistema de justiça, que não recebe a atenção devida porque defende os pobres, porque o estado de bem estar social está ameaçado e retóricas que por aí vão. Ao voltar minha atuação para a pauta racial na Defensoria Pública eu caí da cama e acordei para o fato de que isso não nos levará a lugar algum.

A pauta racial tem evoluído, felizmente, em direção a um caminho no qual ninguém que se atreva a defendê-la o fará impunemente. Exatamente porque no momento de crise de negociação que estamos vivendo, o que se transaciona são direitos de vida e morte, entre o ser e o não ser. Algo em torno de 14 milhões de pessoas estão na iminência de voltar para a linha da pobreza, de modo que não há mais espaço para apenas bancar o defensor de direitos humanos, ou se faz algo de efetivo, que realmente tenha a capacidade de romper com algumas funcionalidades hegemônicas do sistema, ou se vai assinar o pacto narcísico da branquitude com gotas de sangue de milhões pobres, majoritariamente negros.

E em caso da rubrica da Defensoria Pública suspeita-se que isso se torne um indicativo de suicídio institucional, porque do momento em que só nos restar o assistencialismo processual, os robôs talvez sejam mais rápidos e eficientes.

Temos portanto agora uma grande oportunidade de auto-avaliação e de formação da nossa consciência da negritude, que não tenha nada a ver com esses discursos piegas que se exploram por aí, mas sim com um verdadeiro processo de percepção da raça como pauta central da desigualdade social, política, jurídica e econômica no nosso país e que nos permita enxergar algum futuro decente para Defensoria Pública a partir de uma funcionalidade, em alguma medida, emancipada do pensamento colonizado. Só assim poderemos nos creditar a uma atuação eficiente no palco das negociações, como operadores de mecanismos de resistência em face das investidas dominantes mais violentas.

O que sistema de Justiça e todo arcabouço político que o sustenta espera é que a Defensoria Pública permaneça nesse espaço de subalternidade intrapoderes e ela sempre esteja seduzida a nele permanecer. E aí moram muitos perigos de morte institucional quando os números falam mais do que qualquer argumento de sociabilidade.

Acredito que um salutar empoderamento institucional só pode advir de um processo doloroso de descolonização e de reflexão crítica constante, dado que o respeito institucional só tem valor se vem do reconhecimento popular de que a Defensoria Pública pode vir a ser e continuar sendo um lugar de fissura na lógica das institucionalidades em que os interesses hegemônicos almejam controlá-la. É nesse jogo de tensão que convirá por vezes respeitá-la e ceder às suas demandas no palco de negociação dos conflitos.

Não é outra a tática que vem sendo aplicada desde que o mundo é mundo pelas outras instituições hegemônicas, em meio ao qual a Defensoria Pública nunca se enxergou como parte capaz de fissurar o sistema de manutenção de privilégios. Mas em meio ao momento de drástica ruptura político-ideológica, não há outro caminho decente, dado que a outra opção é a inexistência ou a morte em vida.

Essa “escolha” não é fácil, nos exige um compromisso ético muito forte com reflexões críticas do nosso papel e sobretudo do pensamento racial. Exige também muita coragem para enfrentar as investidas ostensivas e sutis do poder, e até mesmo para desafiar a morte.

Confiar que podemos sair vivos desse processo é algo bastante difícil, mas me parece um caminho necessário para não enveredarmos rumo a uma instituição morta-viva, consciente de uma sub existência sujeita a qualquer ventania do pragmatismo autocrático.

Em um derradeiro diálogo que espelha a nossa relação com o poder judiciário é desnecessário dizer que este é um lugar de institucionalidade hegemônica norteado pela branquitude, porquanto é sob o sustentáculo do poder judiciário que o processo histórico e político da escravidão e do racismo tem forjada toda sua dinâmica que norteia a nossa sociedade até hoje.

O que importa ressaltar no relacionamento entre as instituições Defensoria Pública e Poder Judiciário é a existência de uma lógica de conflito não menos espelhada no conflito racial e suas estratégias. Ser negro dentro do Poder Judiciário tem um signo racialmente distinto de ser negro na Defensoria Pública. Em ambos figura-se no palco dos conflitos raciais internos, mas o choque entre essas duas instituições não raras vezes reproduz a lógica de exclusão, branqueamento e  invisibilidade que pende sempre para quem tem mais poder.

Entenda-se com isso que quando o poder judiciário se movimenta dentro da funcionalidade hegemônica e reproduz uma lógica racista não apenas em relação ao jurisdicionado, como naquelas situações caricatas do tipo “não tem cara de bandido”, de respaldo a reconhecimentos pessoais em desprezo às garantias processuais e por aí em diante, mas também no relacionamento com a defensoria pública, porquanto não lhe outorga um papel menos figurativo nos processos e nos julgamentos, há sempre aí uma tensão por absorve-la a partir de um discurso sedutor de neutralidade racial.

Não por acaso alguns juízes até mencionem gostar muito da atuação da Defensoria Pública justamente por enxergar nela uma atuação “neutra” e a tragédia se consuma quando alguns defensores se seduzem de tal elogio.

Mas quando um defensor mais raivoso ou “menos neutro” se insurge, a lógica de desconstrução do pertencimento ao sistema de castas é aplicado impiedosamente, e se traduzem em representações, perseguições políticas e depreciações morais.

Então, o que se percebe, muito lamentavelmente, é que até magistrados negros, em certa medida embranquecidos ou ainda que conscientes da negritude internamente, acabam por não perceber que também reproduzem em face da Defensoria Pública o círculo vicioso das institucionalidades racistas do sistema de justiça.

Não se despreza o labor de valorosos juízes e defensores públicos na desconstrução dos mecanismos da necropolítica do estado, mas sinceramente eu acredito que Bell Hooks tem total razão quando diz que “o reconhecimento mútuo do racismo, seu impacto nos dois, em quem é dominado e em quem domina, é o único ponto que torna possível um encontro entre as raças que não seja baseado em negação e fantasia”.

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