Artigo

Um país dividido

Cristina Soreanu Pecequilo, professora de Relações Internacionais da UNIFESP, desconstrói mito da maior democracia do mundo

EUA
Apoiadores de Trump e Biden se encaram nas ruas da Filadélfia. Foto: Chris McGrath/Getty Images/AFP Apoiadores de Trump e Biden se encaram nas ruas da Filadélfia. Foto: Chris McGrath/Getty Images/AFP
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Cristina Soreanu Pecequilo*

No dia 03/11/2020 os Estados Unidos (EUA) realizaram mais uma eleição para cargos do Executivo (presidência e alguns governos estaduais) e do Legislativo, parte do Senado e a totalidade da Câmara dos Representantes. Além disso, foram realizados vários plebiscitos sobre diversas questões: liberalização do uso da maconha, direitos reprodutivos e sociais. Mais uma vez, o processo eleitoral foi definido como “histórico” e “inédito”, repetindo um enredo que tem se acentuado ao longo do século XXI. 

Mas foi este pleito tão histórico e inédito assim? Desde 2000, quanto o candidato democrata Al Gore perdeu a eleição no Colégio Eleitoral para o republicano George W. Bush (mesmo saindo vencedor no voto popular), situação que se repetiu em 2016 com a candidata democrata Hillary Clinton diante do atual presidente republicano Donald Trump, passando pela relativa calmaria da eleição e reeleição de Barack Obama (2009/2016), as contradições internas dos EUA se tornaram claras e se refletem a cada pleito nos resultados das urnas.

A desconstrução do mito da maior democracia do mundo inicia-se por esse descompasso entre voto popular e Colégio Eleitoral, pela falta de modernização do sistema eleitoral e pela constante escalada de tensões sócio-políticas-econômicas-culturais. Com isso, 2020 é mais um capítulo que revela as contradições e fragmentações contemporâneas dos EUA, e um processo de lutas internas pelo controle do poder em um país dividido.

Nesse contexto, é possível apontar conclusões e tendências após a vitória do democrata Joe Biden e de sua vice Kamala Harris que expõem essas vulnerabilidades. Observando os resultados, a principal conclusão é que se mantém a polarização norte-americana em linhas de gênero, raça, classe social, e em torno das oposições urbano-rural, secular-religioso. Essas dualidades refletem a continuidade da transformação do perfil populacional, econômico e cultural nacional. 

Entretanto, essa transformação não tem sido absorvida na estrutura do sistema político devido à preservação do poder pelos grupos tradicionais branco, anglo-saxão, protestantes (conhecidos pela sigla WASP) e pelo acréscimo de forças radicais recentes compostas por uma população branca mais pobre, religiosa e com pouco acesso à educação.

Essa correlação de forças dissemina-se tanto pela preservação da influência de grupos mais conhecidos como a Ku Klux Khan, como novas correntes conspiratórias como o QAnon. A interpenetração do sistema político por esses radicalismos foi mais intensa nos últimos anos, crescendo no vácuo da frustração econômica e sensação de perda de lugar no mundo. Isso levou à sua expansão e à ampliação de sua representatividade, permitindo aos republicanos controlar simultaneamente o Senado e a Câmara. 

2020 é mais um capítulo que revela as contradições e fragmentações contemporâneas dos EUA, e um processo de lutas internas pelo controle do poder em um país dividido

Esse controle influencia a estrutura dos processos de votação e organização dos distritos nos estados (processo conhecido como “gerry mandering”), assim como a não correção da proporcionalidade da distribuição dos votos na Câmara e no Colégio Eleitoral. Dessa forma, são geradas as seguintes distorções (que explicam, por exemplo, por que já se repetiu, duas vezes, a diferença entre o voto popular-colégio eleitoral nos anos 2000, quando historicamente isso ocorrera apenas poucas vezes): super-representação de distritos e estados menos populosos (de perfil rural, branco, com baixa atividade econômica e mais conservador em religião e costumes), e baixa representação dos distritos e estado mais populosos (multirraciais, seculares, de atividades econômicas diversas, e de classe média e periferias urbanas). 

Enquanto o primeiro grupo se alinha ao Partido Republicano, o segundo se alinha com os democratas. Oscilando entre esses grupos, a classe média tradicional, branca, trabalhadora da indústria e operária, que tende ao secularismo, urbana, só que uma das mais afetadas pelas políticas econômicas neoliberais. E 2020 refletiu essas dinâmicas mais uma vez, e essas divisões foram responsáveis pela elevada mobilização popular. 

Outros fenômenos que precisam ser mencionados, e se repetem periodicamente, foram a dificuldade do acesso ao voto presencial (vide as sempre longas filas de votação), que puderam ser “corrigidas” com a votação por correio que foi majoritariamente democrata, e a não modernização dos sistemas de votação e contagem de votos. Neste campo, o movimento mais importante da eleição de 2020 foi a ação desenvolvida na Geórgia por Stacey Abrams pelo direito ao voto. Abrams, que chegou a ser considerada para ser vice de Biden na chapa democrata, lidera movimentos civis de extrema importância. 

De caráter pacífico, estes movimentos excederam as fronteiras dos protestos de rua do Black Lives Matters, tornando-os mais politicamente eficientes e potencialmente mobilizadores de uma nova agenda e linguagens que caminham tanto ao centro quanto às identidades de grupo. Mais ainda, são pautas que evitam as polarizações democratas associadas à deputada reeleita Alexandria Ocasio-Cortez, o senador Bernie Sanders, dentre outros. Estas visões produzem fragmentação interna no partido e o afastam da base associada à classe trabalhadora e conservadora em políticas públicas (meio ambiente, saúde e previdência) e costumes.

Adicionalmente, duas tendências foram percebidas na eleição presidencial (sendo que uma é consequência da outra, com ressalvas): primeiro, a da mobilização dessas bases partidárias distintas de democratas e republicanos e, segundo, uma votação plebiscitária sobre a gestão Trump. Por isso, mais uma vez um resultado tão dividido em todos os níveis do Executivo e do Legislativo.

A diferença que levou à vitória de Biden no Colégio Eleitoral e no voto popular (o que não ocorreu em 2016) foi a mobilização do Partido Democrata para levar seus eleitores às urnas, fazendo frente à ação pró-Trump. É neste sentido que se pode afirmar que as eleições presidenciais foram um plebiscito: quem era contra o governo votou, sem acomodação. Em 2020, a participação popular foi recorde, com mais de 60% dos eleitores registrados votando.

Por outro lado, quase 50% dos americanos continuaram votando em Trump e apoiando suas ações, demonstrando que seu eleitorado não se resume somente aos mais radicais e sensíveis à retórica conspiracionista, mas que se estende a pautas sociais, econômicas e culturais conservadoras e que conseguem capturar o centro político (a classe trabalhadora moderada e não tão progressista como citado). Mesmo com os EUA sendo um dos países mais atingidos pela pandemia da Covi-19, muitos eleitores não o relacionaram à crise econômica, e votaram em Trump pelos ganhos prévios que obtiveram. E, da mesma forma, votaram contra a “esquerda”, retórica habilmente manipulada e instrumentalizada por Trump para caracterizar o que é um capitalismo mais socialmente direcionado e regulamentado e não “o socialismo”.

Essas pautas explicam o porquê de ocorrer um descolamento entre o pleito presidencial e o legislativo, no qual os democratas esperavam grandes ganhos e não conseguiram. O controle da Câmara dos Representantes deve ser mantido pelos democratas, mas com uma perda de cadeiras. No Senado, por enquanto, empate entre republicanos e democratas, e que somente será decidido em janeiro de 2021, pois alguns estados realizam um “segundo turno” entre os candidatos caso nenhum tenha atingido 50% dos votos (pelo menos duas cadeiras já estão nesta condição). Nos governos estaduais, o mesmo cenário de divisão.

Se até 2022, ou 2024, respectivamente eleições de meio de mandato e eleições presidenciais, essas distorções não forem corrigidas e o sistema reformado, novamente veremos a reprodução dos mesmos processos. Nestas “rachaduras” nascem as teorias conspiratórias, a exclusão, ameaças à democracia, questionamento das instituições, acusações de fraudes eleitorais e ameaças de judicialização como as levantadas por Trump.

Biden prometeu um país unido na diversidade, mais justo e sem raiva. Porém, para isso, é preciso corrigir esses desajustes que provocam o descolamento entre o que são os EUA real e os EUA do passado que desejam preservar estruturas de poder político, econômicas e sociais.

* Cristina Soreanu Pecequilo é professora de Relações Internacionais UNIFESP

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