Artigo

Uberismo é a total desumanização das relações trabalhistas

Não há um patrão de carne e osso, não existe um departamento de recursos humanos

Fonte: Rovena Rosa/Agência Brasil
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Há palavras cuja sonoridade é aparentemente inócua, cuja grafia parece inocente, insuspeita, mas basta ir um pouco além da fisionomia ortográfica para entender os infernos que escondem. Uberismo seria uma das mais recentes formas de exploração da forma de trabalho, consistente numa hiperexploração dos trabalhadores por meio de plataformas. Um emaranhado algorítmico pensado para arrancar direitos trabalhistas na forma de startup jovem, de sucesso, vibrante, lucrativa. Recomendo a leitura atenta do que escreve o professor Ruy Braga, da USP, excelente pesquisador na área sobre as ameaças brutais da “plataformização” do trabalho ou a tirania à qual as novas tecnologias digitais submetem a vida dos trabalhadores mais precarizados.

É a total desumanização das relações trabalhistas. Não há um patrão de carne e osso, não existe um departamento de recursos humanos, muitos sindicatos rejeitam representar essas categorias. O contato com o “cliente” resume-se, muitas vezes, a uma entrega rápida e insensível, com um portão com grades no meio de dois indivíduos, que no momento estão a centímetros de distância, mas cujas mãos apenas se tocam e cujas vidas se tocam menos ainda. Não há direitos, não há humanidade.

Um país como Brasil é o ambiente perfeito para esse processo de uberização da vida. Milhões de trabalhadores informais, uma pauperização crescente, um exército de jovens sem formação, a volta da miséria, o desmonte incessante dos direitos trabalhistas desde o governo Temer e agora a tragédia bolsonarista. No Brasil, a carne do trabalhador precarizado se vende barata. Muito barata.

Uber, Ifood, Rappi, o mundo do trabalhador escravizado pelo algoritmo que, em tempos de crise, absorve, engole milhões de profissionais sem expectativas. São os descartáveis. Mas, paradoxos de uma vida fortuita, os descartáveis viraram essenciais na pandemia. O número de entregadores antes do coronavírus era de 280 mil. Depois da pandemia, passaram a 500 mil. São números impressionantes: 500 mil indivisíveis que entregam comida, mas cujas famílias passam fome ou convivem com ela. São 500 mil. Mais gente, menos lucro.

 

O estudo “Condições de Trabalho de Entregadores Via Plataforma Digital Durante a Covid-19” identificou as jornadas de trabalho maiores e a queda nos rendimentos de 58,9% dos entregadores. Segundo a pesquisa, cerca de metade recebia até 520 reais por semana antes da pandemia. Depois, 71,9% declararam receber até 520 reais, e 83,7% até 650 reais. “É possível aventar que as empresas estão promovendo uma redução do valor da hora de trabalho dos entregadores em plena pandemia”, descreve o relatório. E ainda tem gente que diz que o coronavírus é democrático, afeta igual a ricos e pobres. Contem-me outra piada.

Não se preocupe. O entregador é microempresário, empreendedor. Não é pobreza, é um processo de sucesso individual. Os entregadores não são trabalhadores, são “parceiros” das plataformas. Os jovens que se endividam para comprar uma moto investem no seu futuro. Num país como Brasil, o discurso da meritocracia mata, assim como matam as motos dos entregadores cansados de trabalhar durante mais de dez horas por dia. Entre março e maio deste ano, 87 morreram na capital paulista.

“Agora dão duas opções para quem é pobre, morrer na rua de corona ou em casa de fome. Entre morrer em casa e morrer na rua, eu prefiro nenhuma das duas.” Esta sentença demolidora do Rap dos Informais é a que melhor define a situação da população mais pobre no Brasil. Drama por todos os lados. Em casa, fora dela, na moto, sem ela.

Mas a exploração tem seus limites. Os explorados também explodem. Os invisíveis se cansam da invisibilidade. As greves de entregadores e a formação dos Entregadores Antifascistas são focos de luz nas trevas. Entre as exigências dos trabalhadores estão reajuste de preços, entrega de EPIs para trabalhar com mais segurança durante a pandemia, fim dos bloqueios indevidos, demanda de auxílios ou licenças de saúde e acidente, questionamentos com relação a programas de pontos realizados por algumas plataformas. Dignidade para os que são tratados com indignidade. É a revolta dos de baixo, dos que passavam despercebidos e hoje se tornaram essenciais.

Todo o meu respeito, todo o meu apoio.

#BrequeDosApps.

Basta que o capital pense: a vida não vale o preço de uma entrega.

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