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Tributar os super-ricos para financiar a renda básica

‘Governo segue a cartilha secular das classes dominantes, de tirar dos pobres para dar aos ricos e aos paupérrimos’

Foto: C_Fernandes
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A segunda década dos anos 2000 entrará para a história “como o pior decênio de crescimento econômico dos últimos 120 anos”.

 

Entre o segundo trimestre de 2014 e o segundo trimestre de 2019, a queda média do Produto Interno Bruto (PIB) foi de 0,7% ao ano, enquanto a população total crescia a 0,8% ao ano.

Como resultado de seis anos de baixo crescimento, o PIB per capita do Brasil, após atingir um pico de 13.295 dólares em 2011 (valor em dólares correntes) deverá fechar 2019 em 8.796,90 dólares, patamar próximo ao verificado em 2008.

Situação distinta verificou-se no mundo dos ricos. Segundo a Forbes, entre 2010 e 2020, o número de bilionários brasileiros subiu de 30 para 238; a fortuna acumulada por esse grupo passou de 217,7 bilhões de reais para 1,6 trilhão (valores correntes).

Em relação ao PIB, em igual período, o patrimônio dos super-ricos deve crescer de 5,9% para cerca de 23% do PIB, valor quase igual ao PIB do Chile em 2018. O Brasil ocupa o 7º lugar entre os 10 países que ganharam mais bilionários na última década.

O triunfo dos bilionários contrasta com a piora das condições de vida dos deserdados.

Estima-se que a pobreza extrema dobrará entre 2013 e 2019, retrocedendo aos parâmetros de 2004.

A fome voltou a crescer, após recuar por mais de uma década. Entre 2013 e 2018, a proporção de domicílios que apresentavam insegurança alimentar subiu de 20,3% para 35,1%, patamar superior ao observado em 2004 (33,1%).

Mais de 10 milhões de brasileiros estão em situação de insegurança alimentar severa, não tendo acesso regular à alimentação básica. Entre 2014 a 2019, o número de desempregados no país cresceu 87,7%.

Enquanto 238 bilionários detêm fortuna equivalente a quase um quarto do PIB nacional, em 2019 mais de 25 milhões de brasileiros tinham rendimento médio domiciliar per capita efetivo de 118 reais; 28 milhões viviam com 344 reais; e 23 milhões ganhavam 535 reais. Assim, quase 80 milhões de pessoas recebiam rendimentos inferiores ou equivalentes a meio salário mínimo por mês.

Antes da pandemia, quase 60 milhões de brasileiros estavam desempregados, desalentados ou empregados em ocupações precárias; e 26,8 milhões encontravam-se subutilizados. Após, esse quadro se agravou de forma exponencial. Pela primeira vez, mais da metade da População Economicamente Ativa (PEA) ficou sem emprego.

Diante desse quadro, o Auxílio Emergencial aprovado pelo Congresso Nacional foi decisão humanitária imperativa. Quase 70% da força de trabalho (soma de empregados com desocupados) passaram a receber o auxílio de 600 reais.

A injeção na economia do auxílio emergencial reduziu a pobreza e fez a desigualdade brasileira chegar a seu menor nível histórico.

A tarefa que se impõe é enfrentar o cenário de trabalho-zero, fome e desalento. É necessário introduzir um programa de renda básica que substitua a falta de salário. O sistema de proteção social brasileiro deve ser aperfeiçoado no sentido de que o Estado garanta uma renda universal aos pobres, aos trabalhadores com inserção precária, aos desempregados, desalentados e subutilizados. O formato atual do programa Bolsa-Família contém em si os elementos fundantes para o desenho de novo programa dessa natureza.

A questão que se coloca é como financiar o novo programa. Nessa busca por recursos, o governo segue a cartilha secular das classes dominantes, de tirar dos pobres para dar aos ricos e aos paupérrimos, recusando-se – não importa o quanto lhe custe – a seguir a via democrática óbvia: tributar as altas rendas e riquezas e acabar com os privilégios fiscais das classes favorecidas.

Dada a gravidade da crise, a melhor via a seguir é tributar os super-ricos, para fazer mais do que apenas remediar a vida dos paupérrimos. A exemplo do que ocorreu nos países capitalistas centrais, quando tiveram de enfrentar as crises de 1929 e após 1945, a reforma tributária progressiva é o remédio mais indicado.

Apenas entre 2019 e 2020, a fortuna acumulada dos bilionários brasileiros ranqueados pela Forbes aumentou em cerca de 400 bilhões de reais.

O governo segue a cartilha secular das classes dominantes, de tirar dos pobres para dar aos ricos e aos paupérrimos

O paradoxo é que o sistema tributário brasileiro possui diversos mecanismos que isentam de tributação as camadas de altas rendas e grande parte das rendas do capital.

Tributamos pouco a renda e o patrimônio. Nos EUA, esses dois itens, em conjunto, representam 60% da arrecadação total de impostos; no Brasil, apenas 23%. Por outro lado, somos vice-campeões mundiais em tributação do consumo.

Há uma proposta, que tramita no Congresso Nacional, que enfrenta a injustiça fiscal. Trata-se da “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável” protocolada pelos seis partidos da oposição na Câmara dos Deputados (Emenda Substitutiva Global à PEC 45 de n. 178). Poucos sabem da sua existência, porque a grande imprensa não a divulga.

Dois estudos serviram de ponto de partida para a elaboração da “Reforma Tributária Solidária, Justa e Sustentável”. O contexto da pandemia “Covid-19” e da crise econômica levaram os formuladores dos estudos que subsidiaram a proposta dos partidos da oposição a elaborar o documento “Tributar os super-ricos para reconstruir o país”, que prioriza oito medidas de tributação das altas rendas e dos grandes patrimônios.

Com a retomada do crescimento, estima-se que essas medidas possam gerar recursos adicionais da ordem de 292 bilhões por ano.

A maior parte desse acréscimo de receitas virá da implantação de nova tabela progressiva do IRPF, da tributação de lucros e dividendos e do fim da dedução dos juros sobre o capital próprio (158 bilhões), seguida pelo Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF) (40 bilhões), pela majoração da alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) de setores econômicos com alta rentabilidade, e acréscimo de 1% para os demais setores (40,5 bilhões), pela criação da Contribuição Social sobre Altas Rendas (35 bilhões) e pelas mudanças nas regras do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD, 14 bilhões).

É importante ressaltar que a efetividade das propostas apresentadas exige que se revogue o congelamento dos gastos introduzido pela Emenda Constitucional n. 95/2016

Além dos 290 bilhões de acréscimos nas receitas tributárias, o estudo aponta para a necessidade de se reverem os “gastos tributários” e combater a sonegação de impostos.

Estima-se que as isenções fiscais concedidas somente pelo Governo Federal e a sonegação fiscal totalizem montante aproximado de 900 bilhões anuais. Supondo que após a avaliação da eficácia das renúncias fiscais contabilizadas pela Receita Federal do Brasil (331 bilhões) seja possível reduzir 40% do “gasto tributário”, isso resultaria em recursos adicionais da ordem de 132 bilhões anuais, montante próximo do custo de um programa ampliado de transferência de renda obtido pela expansão dos critérios de elegibilidade do Programa Bolsa-Família.

Da mesma forma, supondo-se que se promova redução de 30% na sonegação, já haveria acréscimo de receita da ordem de R$180 bilhões anuais.

São recursos mais que suficientes para financiar o programa de renda mínima e, assim, enfrentar o cenário de salário-zero. É hora de tributar e acabar com os privilégios concedidos para os super-ricos.

*Este texto não reflete necessariamente a opinião de CartaCapital

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