Artigo
Selfie da conivência
O vale-tudo da mídia para minimizar os crimes de Bolsonaro, comparsas e apoiadores


O comportamento da imprensa corporativa nos dias seguintes ao julgamento do STF que tornou Jair Bolsonaro réu por tentativa de golpe violento de Estado tem sido muito peculiar e merece um olhar cuidadoso para suas estratégias.
Longe de mostrar aquela empolgação e o arroubo justiceiro dos tempos de Sergio Moro, quando havia uma parceria tão forte com o Judiciário que um juiz de Curitiba foi alçado ao papel de super-herói midiático e o contraditório nas acusações contra o então ex-presidente Lula jamais apareciam, dessa vez tem sido bem diferente. Naquele momento da Lava Jato, cujo objetivo era apagar para sempre da política nacional Lula e o PT, as decisões do Judiciário não eram, salvo raras exceções, passíveis de qualquer questionamento pela mídia, que reproduzia todas as sentenças e ovacionava todos os promotores. Do grampo ilegal de conversas da então presidente Dilma Rousseff a PowerPoints sem pé nem cabeça e uma condenação por convicção, sem provas, tudo era aplaudido, jamais questionado.
Agora, quando a Primeira Turma do STF, em 26 de março, aceitou a denúncia apresentada pelo procurador-geral Paulo Gonet contra Bolsonaro e mais sete acusados, o ex-presidente não saiu da cena midiática, ao contrário. Vale lembrar que o capitão é acusado de: organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado pela violência e grave ameaça contra o patrimônio da União, e com considerável prejuízo para a vítima, deterioração de patrimônio tombado. Não são acusações banais, longe disso.
De volta ao comportamento da imprensa. No mesmo dia do julgamento, o pronunciamento de Bolsonaro logo após a decisão do Supremo, mostrando-se perseguido, vítima do Judiciário, teve ampla cobertura, com espaço privilegiado para a fala inconteste do investigado. No dia seguinte, as reportagens cuidavam de mostrar “exageros” em algumas sentenças e “falta de provas”, o que acabou tocando fundo na coragem do PGR, que retirou a denúncia sobre o cartão de vacinas falsificado a mando de Bolsonaro, segundo delação do tenente-coronel Mauro Cid.
Para recordar e comparar, em 7 de abril de 2018, a imagem de um avião muito velho cruzando os céus rumo a Curitiba cerrava o destino de Lula, que havia se entregado à PF após ter a prisão decretada por Sergio Moro. Foi a imagem que fechou a reportagem do JN naquele dia. Simbolicamente, ela queria marcar a ideia de que tudo estava encerrado e Lula não fazia mais parte da cena política nacional. A partir daquela reportagem, a operação de silenciamento foi completa. Nada se falava sobre Lula, tampouco ele próprio falava, não tinha mais voz. Houve a Vigília Lula Livre, manifestações em várias partes do mundo e aqui no Brasil contra a prisão, visitas ilustríssimas à sede da PF em Curitiba, mas nada disso aparecia. Era como se Lula tivesse sido abduzido, ou tivesse evaporado, ou se desintegrado. Não se mencionava absolutamente nada relativo a Luís Inácio em nenhum veículo.
Retornemos ao presente. Ainda no calor do pós-julgamento, alguns recortes da cobertura indicam o que vem por aí. Em 28 de março, a Folha de S.Paulo, que ultimamente mais se parece com a Folha de Tarcísio, trouxe uma entrevista exclusiva com Bolsonaro, com muitas imagens dele na presidência e vídeos para a edição digital. Um espaço editorial bem grande, qualificado e de destaque para o réu acusado de montar uma orcrim e planejar um golpe violento de Estado, com o assassinato do presidente da República, do vice e de ministro do STF, se defender e dizer que a prisão é o fim de sua vida, pois está com 70 anos.
No dia 27 de março, a edição do JN foi uma aula de silenciamento, de como retirar a importância de um tema. Assuntos diversificados e pulverizados que passavam rapidamente pela sua telinha: violência no dia a dia das cidades – roubos, assaltos etc. –, espaço enorme para reportagem sobre esporte, consumidores em busca de produtos no limite da validade, notícias negativas de economia – PIB e inflação, com a população “se defendendo” e escolhendo os “vencidinhos” –, reportagem sobre como o serviço público nos EUA virou alvo de Donald Trump e então, após essa salada de informação, no finzinho da edição, uma matéria mostrando que o PGR pediu arquivamento do inquérito sobre dados falsos do cartão de vacina de Bolsonaro, matéria bem burocrática e superficial.
A boa vontade em relação à tramoia golpista serve ao jogo eleitoral
Enfim, diria que foi uma edição histórica pela tentativa consolidada de apagar o peso do acontecimento “Bolsonaro se torna réu”.
Na semana seguinte, o que vemos surgir midiaticamente é a figura de “Bolsonaro articulador”, fala mansa, que busca apoio de partidos e governadores para emplacar a tese da anistia. Tudo normal, ou melhor, tudo normalizado, e os crimes de que ele é acusado desaparecem do imaginário nacional, assim como desapareceu todo o horror que o então presidente provocou durante a pandemia de Covid–19.
Esses movimentos da imprensa apontam para ações estratégicas no campo político-midiático com vistas a 2026. A breve análise da cobertura nos possibilita identificar que está em curso a construção de uma desidratação da denúncia contra Bolsonaro, o que vem muito a calhar para a construção do nome de Tarcísio de Freitas como candidato à Presidência. À época de sua prisão em 2018, Lula tinha mais de 70 anos, foi silenciado, não tinha voz, desapareceu midiaticamente, não podia sequer dar entrevista, nada em contraditório às decisões judiciais era mostrado, ele não teve o direito de ir ao enterro do irmão. Bolsonaro, ao contrário, é transformado em vítima, em perseguido pela justiça. Seus crimes importam pouco e ele tem pleno direito à voz.
Por fim, inspirada pela estreia do remake da novela global que foi ícone da teledramaturgia em 1988 – era um momento político conturbado e desafiador, em que o Brasil votaria pela primeira vez depois da ditadura, Lula e Collor (o caçador de marajás inventado pela Globo) na disputa – reforço o enunciado da linha fina.
Sim, para a imprensa brasileira, vale tudo na tentativa de apagar Lula da política nacional. •
*Jornalista, doutora em Estudos Linguísticos.
Publicado na edição n° 1356 de CartaCapital, em 09 de abril de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Selfie da conivência’
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