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‘Reformas estruturais’ não passam de contrarreformas

‘Ilusão de submeter a democracia a um capitalismo sem freio deixa o seu rasto de desemprego, recessão, perigo fiscal’, escreve José Sócrates

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
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É desesperador ouvir de novo, agora no Brasil, o discurso das chamadas, “reformas estruturais”. Ouvimos o mesmo, aqui na Europa, na crise de 2008 e durante vários anos. Até se perceber exatamente o que queriam dizer – menos direitos no mundo do trabalho e menos prestações sociais. Nada de reformas de desenvolvimento social, como antes se ouvia. Nada de mudanças na educação, na ciência, na tecnologia, na energia, no ambiente. Nada de igualdade de oportunidades. Ou de mais oportunidades, sequer. As “reformas estruturais” contemporâneas significam apenas mais “flexibilidade” laboral e menos distribuição de riqueza. Isto, nada mais. Mais para uns, menos para os outros. Uma agenda ideológica, uma agenda de poder e interesse disfarçada de teoria econômica. A pretexto de combater a crise, a direita europeia viu nela a oportunidade de fazer o ajuste de contas com os seus demônios de sempre – as políticas sociais e o Estado de Bem-Estar. A política de austeridade nunca foi apresentada como escolha, mas como dogma da ciência econômica: não há alternativa.  

Essa política representou uma tragédia para o projeto de integração europeia. A desconfiança minou a coesão política. O Sul descrente do Norte, a periferia ressentida com o centro. A Europa perdeu unidade, perdeu capacidade de atração no mundo e, pela primeira vez, perdeu também um dos seus Estados membros. O bloco político inspirado nos valores da paz, do diálogo e no direito internacional parece ter desaparecido do palco internacional. Considero, no entanto, que a mais significativa perda na cultura política europeia deu-se com o fim do consenso à volta do que costumávamos chamar de modelo social europeu. A economia de mercado com regulação social do Estado garantiu um longo período de prosperidade que ficaria conhecido com “os gloriosos 30 anos”. Essa espécie de capitalismo social, como alguns o chamaram, foi estilhaçado pelo discurso das “reformas estruturais”. O movimento vinha detrás, é verdade, soprado pelas políticas de privatizações, de liberalização econômica e globalização financeira que caraterizaram as décadas de 80 e 90 do século passado. Julgo, porém, que posso afirmar com segurança que é na crise de 2008 que ele encontra o seu apogeu. Apoiada pelos chamados mercados financeiros, a direita europeia impôs o seu jogo. Desfaçamo-nos de vez da presença deletéria do Estado na economia – privatizemos, revoguemos os direitos laborais e, sobretudo, gastemos menos em políticas sociais (os juros da dívida, esses são sagrados). Os serviços públicos de saúde e educação não passam de uma ilusão perigosa cerceadora da liberdade e do mérito individual. 

O que parece realmente extraordinário é ver como essa conversa foi adotada no Brasil sem um mínimo de reflexão crítica sobre a situação do próprio país. É preciso ser bastante insensível à injustiça social para aprovar reformas trabalhistas que criam mais facilidade para as demissões. É preciso não ter consciência da fragilidade do Estado-providência brasileiro, em particular dos seus sistemas públicos de saúde e educação, para fixar um teto de gastos sociais na Constituição. Na verdade, a importação dessa linha política para o Brasil é brincar com fogo. A desigualdade social é tão grande, tão obscena, tão escandalosa, que só com mais violência estatal se poderá manter. Posta em perspetiva a política brasileira deste novo século, não deixa de ser profundamente irônico que as reformas sociais implementadas durante os mandatos do Partido dos Trabalhadores quase tenham feito esquecer a luta de classes e que seja agora o programa neoliberal de “reformas estruturais” a convocá-la de novo para a primeira linha da batalha política. 

Seja como for, essa agenda política entrou definitivamente em colapso depois da pandemia. Sem demanda e sem oferta, o mercado desapareceu de cena. O prometido choque “psicológico” de confiança que conduziria à retomada do investimento privado e que, por sua vez, geraria o milagre do crescimento econômico, falhou e faliu. Grande parte do desnorte do atual governo brasileiro resulta dessa circunstância – sobra apenas o Estado e ninguém em Brasília sabe o que fazer com ele. Só foram treinados para o eliminar enquanto ator político e econômico. O que resta é, então, um governo sem agenda, sem política e sem jogo de cintura para a reinventar. O que sobra é a vulgaridade retórica, o espernear ideológico, o vazio, a arrogância. 

A ilusão de se submeter a democracia a um capitalismo sem freio nem regulação deixa agora o seu rasto de desemprego, recessão, perigo fiscal e muito, muito desespero. Bem vistas as coisas, as “reformas estruturais” não passam de contrarreformas. Elas destinam-se, no fundo, a colocar a soberania do mercado definitivamente acima da soberania popular.

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