Artigo

Racismo, milícias e o crescimento dos grupos armados na América Latina

Para entender o poder territorial dos grupos armados, é fundamental reconhecer que eles atuam principalmente em áreas assoladas por violência pobreza e racismo

Racismo, milícias e o crescimento dos grupos armados na América Latina
Racismo, milícias e o crescimento dos grupos armados na América Latina
O Rio, sob intervenção militar e com papel central no tráfico de drogas
Apoie Siga-nos no

Grupos armados (milícias, facções e similares) tornaram-se uma realidade disseminada no Brasil e na América Latina, explorando territórios, oprimindo populações e interferindo na vida política nacional. Com um modelo de negócios baseado na exploração territorial, conexões com a política institucional e as forças policiais, e legitimados por uma sociedade e um Estado racistas, esses grupos armados têm impactado a vida nacional em diversas dimensões, e sua expansão indica que as políticas de segurança atualmente executadas não têm sido eficientes em combatê-los. Pelo contrário, têm fortalecido sua existência e disseminação.

Os grupos armados são heterogêneos e possuem especificidades locais, mas é fundamental identificar seu modus operandi comum. O fenômeno dos grupos armados pode ser caracterizado como possuindo raízes históricas. O controle armado territorial tem tido um crescimento contínuo e variado, dentro do Brasil e no continente, como visto no caso de México e Colômbia. Porém, a tarefa de compreender o que há de comum entre suas diferentes expressões locais permanece como fundamental no enfrentamento desse problema.

No Brasil, observa-se a expansão das facções por todo o território nacional, seja através da aniquilação de grupos menores locais, ou por meio de alianças e incorporações em suas redes criminosas. Da mesma forma, as milícias – enquanto um modelo de controle armado e exploração econômica territorial – também se expande para todo o País.

Mas é sobretudo a relação estrutural com o Estado (em sua dimensão repressiva, mas não apenas) que permite a expansão e consolidação dos grupos armados, tanto aqui quanto nos outros países citados. Os grupos que exercem o controle territorial, suas disputas com outros grupos e a forma como o poder público responde a eles influenciam fortemente nas diferentes “versões” regionais do controle armado territorial.

Nas diferentes configurações locais observa-se, portanto, impactos diferenciados no acesso a serviços de educação, saúde, mobilidade e lazer – e fortemente no acesso à moradia, produzindo o atual fenômeno dos “deslocados urbanos”, ou seja, pessoas forçadas a sair de seus domicílios pelos grupos armados atuantes em sua localidade de moradia. Tal relação entre controle armado, território e condições de moradia se torna evidente em função da economia política dos ilegalismos, na qual o “modelo de negócios” dos grupos armados assenta-se na extração de ganhos econômicos a partir da exploração da estrutura urbana. Assim, a produção do espaço urbano encontra-se no coração do modelo de negócios dos grupos armados.

Os grupos armados constituem-se atualmente como negócios, empresas ilícitas com tentáculos nacionais e internacionais. Grandes facções e grupos milicianos, oriundos de estados do sudeste brasileiro, expandem seus interesses econômicos para outras regiões do país, explorando mercados lícitos e ilícitos disponíveis em cada território. Tais atividades incluem em geral tráfico de drogas, controle e venda de serviços, sequestros, assaltos, extorsões e proteção, mas em contextos locais específicos abrangem outros mercados, como exploração do garimpo na Amazônia. O que se observa é que as atividades econômicas e a extração de rendas desses grupos estão estruturalmente vinculadas ao controle territorial – é o controle da violência no território que garante o acesso aos recursos explorados. Como atividade econômica, ainda que sejam ilícitas e predatórias, podem promover desenvolvimento econômico local e gerar empregos no território, o que muitas vezes produz legitimidade social para sua atuação.

Esse dinamismo, contudo, econômico não é resultado da ausência do Estado, como poder-se-ia imaginar. Ao contrário, em seus negócios os grupos armados misturam-se aos atores estatais, confundem-se com eles e, ao gozarem de uma enorme tolerância estatal para operar, somente podem existir porque o Estado assim o permite. Somente quando a violência explode no cotidiano dos territórios em níveis acima dos praticados – como exceção à regra da violência rotineira – o Estado age na repressão, o suficiente apenas para que se retome os parâmetros ordinários de opressão, agressão e exploração. Nesse sentido, o Estado atua na proteção desses negócios, inclusive através de proteção política a seus agentes, escancarando a imbricação entre Estado e grupos armados, traduzindo o poder econômico dos grupos armados em poder político.

Grupos armados representam uma ameaça crescente à democracia, cada vez mais atuando como atores políticos e expressando seus interesses na arena institucional. Milícias e facções interferem em eleições, controlam processos decisórios e impactam a ação política coletiva. A influência política desses grupos se manifesta na negociação de candidatos para obter apoio e fazer campanhas em determinados territórios, muitas vezes recorrendo à violência política, que ecoa no espaço institucional a violência territorial por eles praticada. Essa dinâmica representa uma ameaça ampla à sociedade brasileira, como evidenciado nas eleições municipais de 2024.

O poder dos grupos armados está enraizado no racismo e em outras dimensões de opressão estruturais de nossa formação social. Não é possível compreender o poder territorial que os grupos armados exercem sem reconhecer que as localidades onde atuam são predominantemente ocupadas por populações estigmatizadas, vitimadas pela violência policial, encarceramento em massa, pobreza e racismo estrutural.

Local de moradia e de vida de pessoas negras, mulheres, população LGBTQIA+ e migrantes, as periferias, favelas e outros territórios da pobreza tornam-se espaço para atuação de grupos armados, porque a violência contra a população pobre e trabalhadora brasileira é legitimada socialmente e através da atuação estatal. Por esses motivos, tais territórios constituem-se como locais de resistência, onde constroem-se repertórios de luta e de sobrevivência fundamentais para o enfrentamento desse cenário violento.

Uma agenda para o enfrentamento dos grupos armados

É fundamental produzirmos políticas públicas que sejam promotoras de direitos, garantindo acesso à habitação, lazer, saúde, educação e a livre circulação entre os territórios, permitindo que as populações possam chegar até aparelhos públicos necessários para o exercício de sua cidadania. Também é preciso garantir que essas populações não sejam expulsas de seus locais de moradia, seja pela violência, seja por interesses econômicos. O combate ao racismo, à intolerância religiosa, à violência de gênero e outras correlatas também deve ser objetivo de políticas públicas que protejam as populações vulneráveis e garantam justiça às vítimas e direito à memória e reparação. Proteger defensores de direitos humanos e ativistas da violência armada e da violência política também é fundamental.

Por fim, é preciso requalificar o debate sobre segurança pública no Brasil, modificando a centralidade do confronto militarizado para a defesa dos direitos humanos, o combate à corrupção política e de operadores do sistema de justiça e o controle social das forças policiais. Somente através de medidas que enfrentem a conivência e a cumplicidade do Estado brasileiro com os grupos armados começaremos a desmontar os tentáculos que hoje asfixiam a nossa democracia.

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.

O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.

Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.

Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo