Artigo

O povo não é nação

O Brasil vive sempre em transe, não consegue sair da Idade Média e até mesmo não pode

Vista aérea da Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro, durante o pleno avanço da Covid-19 (Foto: Thiago Ribeiro/AGIF)
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Glauber Rocha tinha de saída um defeito grave: era tido como genial pelos Cahiers du Cinéma. Dedicavam-lhe páginas e páginas, alternando-as ao deslumbramento com Godard e muitos da nouvelle vague. É do conhecimento até do mundo mineral que, naquela quadra da história humana, o neorrealismo italiano foi de longe o movimento cinematográfico mais significativo. Rossellini, Vittorio De Sica, Luchino Visconti, Mario Monicelli, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Lina Wertmüller, Dino Risi são nomes definitivos, sem contar que suas obras são muito menos enfadonhas do que L’Année Dernière à Marienbad ou Hiroshima Mon Amour. E sem falar de Federico Fellini, premiado pela primeira vez em Veneza, em 1954, com Lo Sceicco Bianco.

Do cinema francês aprecio mais Jean Renoir, Marcel Carné, Julien Duvivier e outros desse porte que precederam brilhantemente a nova onda. Nesta destaco Louis Malle, autor de um filme substancioso e evocativo da sua infância em tempo de guerra, Lacombe Lucien. Manteve o nível nos Estados Unidos, para onde se mudou, como em Atlantic City. Glauber não passou de uma súbita enfatuação de típica marca gaulesa, inspirada na paixão pelo recôndito inalcançável e pelo inesperado. Quanto a Glauber Rocha, hoje não há muitos a se lembrarem dele e dos seus filmes.

Isto tudo cabe em função da capa desta edição, que imita o cartaz de um filme do cineasta brasileiro, Terra em Transe. Quando o assisti, estive longe de me entusiasmar. Poderia ter sido profético porque vigorava a ditadura e ouviam-se fora da tela um tiroteio renhido e uma gritaria ameaçadora. A luta armada imaginada no filme não aconteceu, contudo. Aqui e acolá, grupos de resistência mirrados e iludidos, embora corajosos. Admito, porém, que Terra em Transe é um belo título, com a força da validade intocada até hoje. Talvez não do ponto de vista pretendido por Glauber, mas a significar, de todo modo, a eterna fragilidade de uma situação caótica.

A chamada da capa desta edição também poderia ter sido o Brasil em confusão, ou no caos, e esta é de fato a situação em que o povo que ainda não é nação se encontra neste exato instante, presa da demência bolsonarista e incapaz de entender a gravidade do momento. Temos governantes além de obsoletos, embora ferozes, e um povo alienado da realidade, incapaz de perceber a tragédia. Algo que me entristece são as numerosas comparações possíveis com nações oprimidas.

Mianmar é um exemplo perfeito. Um exército de ocupação, igual ao nosso, vibra um golpe de Estado contra o presidente eleito e a líder política e o povo vai às ruas para enfrentar os fuzis da repressão, a derramar sangue pelas calçadas. Já se falou bastante a respeito das razões dessa ignorância abissal, desta sujeição silenciosa. Deveria a questão povoar os pesadelos das lideranças políticas, mas estas falharam inexoravelmente até hoje e continuam pelo caminho do fracasso. A situação brasileira não tira o País da Idade Média. Nem é o caso de falar em conformismo, estamos muito além de uma conjuntura precipitada pelo medo.

A plebe nativa não dispõe da mais pálida possibilidade de dar-se conta da sua condição, esta não poderia ser outra. A confusão reinante, ao que tudo indica, é por enquanto irreversível. Lemos uma entrevista de Ciro Gomes à Folha de S.Paulo. Ele toma posição de candidato em 2022. Esta revista sempre teve o maior respeito por Ciro e seu irmão Cid e podemos até entender as queixas que ele dirige contra o PT. Já houve tempos atrás um significativo desabafo de Cid Gomes, quando ainda parlamentar, contra aquilo que considerava a tibieza petista. Lembro-me que tentei ligar para ele, a fim de cumprimentá-lo, mas não consegui comunicação.

Muitas críticas cabem contra inúmeros políticos e suas agremiações, mas, na visão obrigatória que se oferece aos nossos olhos, o que convém ao País neste momento é afastar de vez Bolsonaro e o seu bolsonarismo. Contra o atual presidente e suas atitudes é preciso, na nossa interpretação, encontrar um candidato único que nos represente a todos neste empenho decisivo. Ou, por outra, não é o momento de criar desavenças entre quem pode afinar-se com uma consigna comum. Ciro, a seu modo, comete o mesmo equívoco de Lula, disposto a lançar candidato pouco mais de um ano e meio antes do pleito. Há pela frente largas possibilidades de refletir. Deve haver também tempo para armar campanhas determinadas na tentativa de tornar possível a adesão do povo por ora abandonado ao seu destino. 

Publicado na edição n° 1147 de CartaCapital, em 4 de março de 2021.

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