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O perigo em mostrar Trump e Bolsonaro como ‘populistas de direita’

‘Uso da terminologia falha miseravelmente ao ser confrontada com a vida real’, escreve Gustavo Freire Barbosa

Donald Trump e Jair Bolsonaro: uma ligação umbilical. Ou não (Foto: Alan Santos/PR) Donald Trump e Jair Bolsonaro: uma ligação umbilical. Ou não (Foto: Alan Santos/PR)
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Por Gustavo Freire Barbosa*

Após os resultados da eleição presidencial nos EUA, a Folha de S.Paulo deu a seguinte manchete: “Biden derrota Trump e freia onda populista”. Um dos seus colunistas foi mais cauteloso: “Derrota de Trump abala populismo, mas é cedo para falar em fim da onda”. Também na Folha, o cientista político Yascha Mounk escreveu artigo intitulado “EUA impediram um populista autoritário de destruir instituições democráticas do país”. Mounk foi uma das vozes que saudaram o golpe de 2019 na Bolívia como o alvorecer da democracia. Até onde se sabe, não deu opinião sobre o tenebroso papel da OEA no caso.

“Populismo” é aparentemente o termo padrão utilizado pela mídia comercial para se referir a Trump e assemelhados. Sua aparição em editoriais, artigos e matérias jornalísticas é tão corriqueira quanto deseducadora. A insistência em qualificar Trump como “populista” joga a compreensão de sua ascensão em um atoleiro semântico, levando a análises que oscilam entre a crítica moral e a defesa idealista das democracias liberais.

Essa orientação editorial não se limita a páginas de jornais. No livro “A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital”, a jornalista Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo, faz um detalhado relato sobre a perseguição que sofreu nas redes pelas mãos da matilha bolsonarista. A partir de sua experiência, Campos Mello reflete sobre os riscos à liberdade de imprensa diante de governos como o de Trump, Viktor Orbán, Recep Erdogan e do próprio Bolsonaro.

A jornalista qualifica o neofascismo de Bolsonaro como “populismo de direita”, conforme o o léxico do jornal em que trabalha. Apesar dos esforços em mostrar divergências civilizatórias, durante a campanha de 2018 a Folha orientou seus jornalistas a não se referirem ao ex-capitão como de “extrema de direita”, sabendo que o uso deste epíteto poderia abrir inconvenientes horizontes ideológicos nos quais Bolsonaro está mais perto do que longe do jornal dos Frias; está lá, na ficha do Grupo Folha, o entusiasmo com o golpe de 1964 ao ponto de fornecer veículos para a Operação Bandeirantes, conhecido QG da repressão contra opositores do regime.

Qualificar Bolsonaro como “populista de direita” tem entre suas finalidades uma que é muito evidente: demarcar posição em face do “populismo de esquerda”, que, também segundo o vocabulário da Folha, tem Chávez, Maduro e Evo Morales como algumas de suas referências. O uso dessa terminologia é útil na medida em que passa a ideia de racionalidade e moderação diante dessas duas espécies, mas falha miseravelmente ao ser confrontada com a vida real: Trump, Bolsonaro e afins, como o fascismo nas décadas de 20 e 30, não são estranhos à democracia liberal e ao capitalismo, sendo, sim, sua alavanca de emergência em situações nas quais o “excesso” de democracia impõe perdas que o poder econômico não está disposto a aceitar.

A Folha, por exemplo, não mostra discordâncias quanto ao programa econômico de Paulo Guedes, que jamais teria chances de sair do papel se não tivesse pegado carona no “populismo de direita” para quem teatralmente arreganha os dentes. O bolsonarismo, por sua vez, se engalfinhou com o lavajatismo, valendo-se do golpe contra Dilma, da prisão arbitrária de Lula e de eleições fraudadas para chegar ao Palácio do Planalto. Não dá para chamar de fascista, neofascista ou correlatos um governo que, embora não tenha bico e plumas, evitou a volta do PT e abriu as avenidas rumo a um horizonte privatista e de desmonte do Estado brasileiro.

Não são poucas as convergências entre o clã e o jornal dos Frias. A Folha publicou editorial favorável à reforma administrativa, que pretende estender ao serviço público a catastrófica fórmula da reforma trabalhista (que também recebeu seu apoio). Deu a entender que todos os servidores, da professora do ensino fundamental ao coveiro da prefeitura, ganham como desembargadores. Seriam eles a razão pela qual o Brasil se encontra no buraco.

Qualificar Bolsonaro como “populista de direita” tem entre suas finalidades uma que é muito evidente: demarcar posição em face do “populismo de esquerda”

Se o serviço público é o espantalho da vez, ontem era a CLT que ocupava esse papel, vindo a ser substituída pela Previdência. A reforma trabalhista, vendida como remédio milagroso, não entregou os empregos e a pujança econômica que prometera (pelo contrário). A da Previdência, definitivamente, não entregará (como já não vem entregando). As fichas foram recentemente jogadas na reforma administrativa, que privatiza o serviço público e segue o manual de deterioração das condições de trabalho. Em público, seus defensores adotam o idêntico discurso de modernização apregoado pelas reformas anteriores. No privado, o objetivo é retomar os níveis de acumulação fazendo com que o Brasil retorne ao que era antes da década de 30: uma mistura de minas e senhorios de engenho.

Não podemos esquecer que o objetivo das milícias de opinião que covardemente atacaram Campos Mello é proteger o grupo político que pode concretizar essas reformas – todas apoiadas pela Folha, voraz adversária do “populismo de direita”. Por si só, o uso de métodos milicianos é a prova de que o enfrentamento real ao bolsonarismo não deve ser moderado, como defende quem o qualifica de “populista de direita” ao invés de enxergá-lo como uma expressão contemporânea do fascismo; “populista de direita” serve, no fim das contas, para amortecer o embate contra Bolsonaro e trazer a discussão para fora de qualquer perspectiva que aborde as disfunções democrático-liberais do capitalismo.

Isso por que a relação entre o programa ultraliberal de Paulo Guedes – cuja razão é a mesma da Folha – e o neofascismo de Bolsonaro são simbióticos. “Quem não quer falar mal de capitalismo deveria se calar também sobre o fascismo”, disse Max Horkheimer. Ser seletivo nas críticas é enfrentá-los de maneira insuficiente, vez que não é possível bater em um e poupar o outro, do mesmo modo que não é possível bater em Pinochet e afagar os liberais dos Chicago Boys e seu projeto derrotado nas eleições chilenas de 1970. A própria Folha de S. Paulo não viu problemas em qualificar a ditadura militar brasileira como “ditabranda” e cometer o disparate de comparar Bolsonaro a Dilma Rousseff quando julgou que o primeiro estava se distanciando do privatismo de Guedes.

Nas linhas finais de seu livro, Campos Mello rebate uma afirmação de Bolsonaro e conclui que imprensa não foi feita para ser patriótica ou bajular governos: “se houver notícias positivas, há que se reportar. Se as informações forem negativas, também. Esse papel é primordial para o funcionamento da democracia – o jornalista como cão de guarda”.

Campos Mello e seus colegas jornalistas, imbuídos das melhores intenções, podem até se considerar cães de guarda da democracia. Mas e os jornais em que trabalham, quando falam em “populismo” e defendem medidas que tornarão ainda mais difícil a vida do povo trabalhador, estão sendo cães de guarda de quem?

*Gustavo Freire Barbosa é advogado, professor e mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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