Artigo

O papel da defesa comercial na neoindustrialização e as relações Brasil-China

As medidas que atingem Pequim não tratam de punir o país ou tentar combater a ascensão chinesa, como fazem EUA e UE

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva durante audiência concedida ao ministro dos Negócios Estrangeiros da China, Wang Li, na Base Aérea de Fortaleza - Foto: Ricardo Stuckert / PR
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A inserção chinesa no comércio internacional tem sido uma preocupação. O país, com seu modelo de desenvolvimento que conta com uma forte participação do Estado e por ter se tornado uma grande competidora internacional, atrai a atenção de nações do centro do capitalismo que construíram suas indústrias sob forte protecionismo. A guerra comercial travada pelos EUA contra a China é o maior exemplo disso.

Logo nos primeiros meses do terceiro governo Lula, uma das medidas econômicas propostas foi a taxação de produtos chineses, em especial as mercadorias da Shein e outros marketplaces, que entravam de forma facilitada no Brasil e geravam reclamações do varejo nacional (o OPEB escreveu sobre isso aqui). Visando combater a sonegação de impostos, defender comercialmente os produtos brasileiros e atrair investimentos externos ao País, desde então, o poder público vem tomando uma série de ações no campo da defesa comercial: medidas “utilizadas para neutralizar impactos negativos sobre a indústria doméstica decorrentes de importações praticadas a preços de dumping, importações subsidiadas ou surtos de importação”.

Tais medidas não devem ser vistas como uma defesa do protecionismo como valor, mas como uma tentativa de se criar igualdade de condições para o desenvolvimento da indústria no Brasil. Pesquisas como a de Ha-Joon Chang têm mostrado que, no geral, ações de defesa comercial foram aplicadas como políticas de desenvolvimento nos países que hoje estão no centro da economia global. A questão é como encontrar o equilíbrio entre a proteção que estimula a indústria, a eficiência e o avanço tecnológico, e aquela que apenas serve a grupos econômicos específicos sem agregar no desenvolvimento nacional. Nas ações de defesa implementadas pelo governo brasileiro, a China – maior parceira comercial do Brasil, nação da qual mais importamos mercadorias e, ela mesma, grande utilizadora de medidas de defesa comercial ao longo do seu processo de desenvolvimento – vem sendo a principal afetada pelas medidas. Trataremos neste texto sobre o papel da defesa comercial para a neoindustrialização no contexto das relações Brasil-China.

A China como alvo da defesa comercial

A preocupação em relação à inserção chinesa no comércio internacional não é nenhuma novidade, e a adesão do país à Organização Mundial do Comércio (OMC) foi um longo processo de negociações e exigências que culminou, em 2001, com o Protocolo de Acessão da China à organização, estabelecendo-se o prazo de 15 anos para a adaptação do país às obrigações do acordo. O protocolo definiu a economia chinesa como “economia de não mercado” (ENM), considerando como sistêmica a atuação do Estado chinês, que agia como investidor, facilitador e subsidiário de sua indústria interna. A partir disso, existia a presunção de que os produtos chineses operavam sob a lógica de não-mercado.

O efeito dessa presunção dava-se quando os países decidiam adotar medidas de defesa comercial contra a China. As regras da OMC permitem aos países que apliquem medidas de defesa, contra qualquer outro país, em casos constatados de dumping e subsídios. Como a China era considerada uma ENM, os cálculos que determinariam a intensidade das taxações adicionais a serem cobradas sobre os produtos chineses eram feitos a partir de métodos alternativos, desconsiderando-se dados da economia chinesa (com por exemplo os preços dos custos, que eram mais baixos), já que o país era uma ENM.

A partir de 2016, o Protocolo de Acessão da China saiu de vigência e com isso a China passou a ser considerada uma Economia de Mercado. Em termos práticos, isso significa que, a não ser que os peticionários das medidas de defesa contra a China comprovassem que em determinado setor o país continuava como ENM, a China deveria ser tratada como Economia de Mercado.

O fato de a China ser um país com um modelo de desenvolvimento no qual há forte participação do Estado (o que abre margem para o questionamento sobre apresentar ou não condições de economia de mercado) e na conjuntura das últimas décadas também ter se constituído como uma grande competidora internacional, tem feito com que medidas contra ela cresçam, em especial nos mercados desenvolvidos que, historicamente, construíram suas indústrias debaixo de forte protecionismo, apesar de pregar ao mundo em desenvolvimento o liberalismo exacerbado. O renascimento das políticas industriais, tecnológicas, de investimentos internacionais e comércio exterior nos últimos anos nos países desenvolvidos, vistas como necessárias para a recuperação econômica, reacenderam as medidas de defesa (justificadas ou não pelas regras da OMC).

A guerra comercial travada pelos EUA contra a China é o maior exemplo, sendo seguido pela União Europeia (UE), que também vem adotando medidas protecionistas para conter a China. No caso do Brasil não há guerra comercial com o seu maior parceiro de trocas e importante aliado, mas nota-se que após o fim da vigência do Protocolo de Acessão da China à OMC, ainda prevalece por parte de setores da indústria doméstica a visão de que o país deve ser tratado como ENM. A Confederação Nacional da Indústria (CNI), por exemplo, considera que o país não deve ser tratado automaticamente como economia de mercado e, ainda, que a inversão do ônus da prova – agora a cargo dos peticionários nacionais – de terem que oferecer evidências para o tratamento da China como ENM gera sérios desafios, uma vez que o acesso às informações sobre as práticas de produção e distribuição da indústria chinesa é limitado. O fato é que as ações contra Beijing representaram 33% das medidas antidumping em 2020, sendo o país mais pressionado pela defesa comercial brasileira.

Shein, carros elétricos e aço

Como sinalizado pelo vice-presidente da República e ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Geraldo Alckmin,  as relações com a China são centrais para o Brasil e seu processo de neoindustrialização. O OPEB abordou recentemente como a instalação de uma fábrica da BYD em Camaçari-BA pode sinalizar um caminho. Quando se analisa as medidas especificamente para automóveis, por exemplo, é possível notar a presença de diversos componentes que passam por alguma medida antidumping em vigor (ex. pneus e vidros automotivos), e desde o início do governo vêm sendo tomadas iniciativas que interessam a esse mercado, como a volta do Imposto de importação para veículos eletrificados. Isso demonstra a constante preocupação do governo com sua política de construção de uma indústria pujante, já que dessa forma a importação se torna um processo caro, incentivando as empresas atuantes nesse mercado a investirem nas cadeias produtivas aqui no Brasil. Os investimentos anunciados pela BYD já chegam a 5,5 bilhões de reais em sua planta industrial na Bahia e 154,1 milhões em uma fábrica na capital amazonense, ambas com potencial de geração tecnológica. Isso deixa claro que o objetivo do governo com taxações e medidas antidumping não é a restrição pura e simples de importações.

Talvez o caso mais famoso de ação governamental tenha sido a regularização da taxação de marketplaces (Shein, Shopee, AliExpress, etc). Para além de um problema de comunicação do governo, a medida já demonstrava a preocupação em assegurar a competitividade dos varejistas atuantes no País. Considera-se que a medida tenha sido importante para atrair investimentos, no caso da Shein, já que a empresa se comprometeu a investir R$ 750 milhões e gerar 100 mil empregos, nacionalizando uma parte da produção antes importada da China.

Outro caso mais recente – e controverso – é na indústria siderúrgica, na qual a China é grande competidora – o aço pré-pintado chinês, por exemplo, representa 56% das exportações mundiais. Colecionando 7 medidas antidumping em vigor e 3 investigações em curso no setor do aço, recentemente, adicionou-se novos impedimentos (dessa vez válidos para todos os países, não só a China): o MDIC estabeleceu cota de importação ao aço e aprovou uma taxação adicional sobre excessos na cota, que pode chegar a 25%, atingindo 11 produtos siderúrgicos.

De um lado, setores importadores têm apontado que a medida é prejudicial, vai gerar inflação, aumento dos custos e perda da competitividade nacional. De outro, as siderúrgicas afirmam que tem havido uma invasão de aço no País, em especial do aço chinês, que consideram estar em condições de ENM. O objetivo, assim, seria assegurar aos produtores nacionais igualdade de condições e evitar a dependência do Brasil em uma atividade essencial para o processo de neoindustrialização.

De todo modo, ainda que entre controvérsias, parece estar havendo a tentativa de alguma articulação entre a defesa comercial, medidas de proteção e os objetivos de neoindustrialização. Contudo, a vigilância constante tem de ser empregada para que tais medidas realmente sirvam à indução da indústria, do emprego, do desenvolvimento tecnológico e da atração de investimentos externos. Por fim, sobre as medidas que atingem a China, vale ressaltar que não se trata de punir o país, ou tentar combater a ascensão chinesa como fazem EUA e UE. A China é vista pelo Brasil como uma das principais parceiras para a neoindustrialização e, assim, as medidas têm visado apenas fortalecer mecanismos para atrair investimentos e favorecer o mercado interno brasileiro.

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