Artigo

O momento é de festa, corpos na rua

‘50 anos de Stonewall – Nossas conquistas, nosso orgulho de ser LGBT’ é o tema da Parada do Orgulho LGBT em São Paulo

Manifestantes cubanos LGTBI marcharam na avenida Prado, em Havana, em 11 de maio de 2019. - Mais de cem pessoas participaram de uma manifestação pelos direitos LGBT em Havana no sábado, atividade não autorizada pelo governo, em meio a tensões com a polícia. (Foto: YAMIL LAGE / AFP)
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Sob a perspectiva histórica é inegável que se reconheça os avanços obtidos pelo movimento de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais em nosso país, a partir da mobilização das movimentos e organizações sociais e civis que tem se empenhado diuturnamente para que a sociedade avance no sentido de conquistar direitos, se reconhecer as diferenças e, assim, garantir a cidadania plena de um conjunto social que tem sido historicamente estigmatizado.

A vitória mais recente é a decisão do Supremo Tribunal Federal – STF em que se reconhece a demora por parte do Legislativo brasileiro em criminalizar a homotransfobia, de maneira a equipara-la ao crime de racismo. A despeito das ressalvas de minha parte, destaco minha discordância em relação a equiparação desse crime ao crime de racismo; da utilização do termo homofobia ao invés de heteroterrorismo, já que sob a minha ótica, as mortes ocorrem sob a conivência do Estado, sendo crime de ódio que precisa ser nominado para que não caia na vala comum, além do necessário cuidado ao criar novas patologias; e, à própria questão punitivista; considero necessário que possamos reconhecer esse marcador dentro do estado brasileiro que ficará impossibilitado de negar a existência do tipo penal e, portanto de criar uma série de regulamentações que atendam a essa antiga demanda. Não podemos deixar de lembrar que o Brasil é um dos países que mais matam LGBTT+, inclusive em relação a outros países onde a conduta é punida com pena de morte.

Mas é preciso avançar, a afirmação vinda por meio da decisão do STF em que reconhece a demora do Legislativo para legislar sobre esse tema e a culpabilidade daquele que pratica a homotransfobia, nos insurge a questionar, sob a perspectiva social e política, como o Estado tem tratado esse conjunto social de diferentes maneiras. O momento é de festa, mas é também de reafirmação dos corpos que se colocam em disputa por reconhecimento das suas existências, sem que seja necessário a humilhação burocrática praticada pelas Instituições, que acabam por praticar o suborno social.

Tratei do suborno social na minha pesquisa de doutorado “Políticas de Morte para corpos sem lei… “ e passei a considerar que a despeito da conquista de direitos, lgbts continuam a morrer. Os dados apontam que a cada 23 horas lgbts morrem e, entre os meses de janeiro e maio de 2019, já foram computadas 141 mortes, conforme relatório do Grupo Gay da Bahia, das quais 58 mortes são de travestis e transexuais, de acordo com o que aponta o Mapa de Assassinatos da Associação Nacional de Travestis e Transexuais.

É um jogo onde as Instituições agem no conta gotas de direitos da seguinte forma: te autorizo a alterar o nome e o sexo biológico nos registros civis, mas não te autorizo ao tratamento de pré-natal, não te possibilito o ingresso no serviço público, pois não há certificação militar, tudo isso em razão das burocracias estatais. É uma sentença social onde se diz: Reconheço seu nome, mas não seu corpo!

A acumulação de desvantagens por certos segmentos do movimento LGBT é ainda mais visível, quando observadas as práticas de invisibilidade de pessoas transgêneros – travestis e homens e mulheres transexuais, que ao questionar o Estado e os padrões heteronormativos, não podem e não devem existir, mas devem suportar o peso da própria existência, como escreveu o filósofo David Lapujade. Discutimos o status legal do feto, mas continuamos a não reconhecer a morte de uma travesti brutalmente assassinada pela nossa produção de ódio. Se a morte de uma pessoa trans causa comoção, a morte de muitas se torna estatística, subnotificada, diga-se.  Vulnerabilizamos essas vidas de tal forma que certos corpos sequer chegam a condição de precariedade, já que parte desse grupo não acessa os mecanismos mínimos de poder econômico. O transfeminicídio é a expressão mais potente e trágica do caráter político das identidades de gênero. O problema do estado era o nome, passou a ser a existência.

A prática da humilhação burocrática nos faz reafirmar a necessidade de irmos às ruas, para cantar, para dançar, para provar que estamos em campo de disputa por direitos, pela nossa existência e para dizer não à produção de morte que tem sido um dos principais marcadores desses grupos. Pareço pessimista, eu sei, mas é o desejo que a negligência deixe de atuar sobre nossos corpos, sobretudos os corpos trans. Corpos nas ruas são a premissa para novos horizontes que deem conta de libertar nossas identidades e sexualidades ainda pautadas sob o olhar binário, segmentado, racializado e econômico do estado brasileiro.

Não nos esqueçamos de Marsha P. Johnson que na sua altivez e rebeldia nos trouxe ao mundo das conquistas.

Queremxs ser vistxs e, sobretudo lembradxs. Viva Marsha !

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