Artigo
O financiamento climático exige um novo olhar econômico
Resgatar o papel do Estado como investidor, planejador e garantidor de equidade não é um retrocesso, mas uma condição para um futuro viável
À medida que a COP30 acontece em Belém, no Brasil, fica claro que o financiamento climático está diante de uma encruzilhada. O aumento das temperaturas globais, o avanço das desigualdades e o peso insustentável das dívidas nos países em desenvolvimento convergem para um mesmo ponto: a questão já não é se será preciso mobilizar grandes recursos, mas como, para quem e com que propósito. Sob a ótica do Sul Global, três reflexões são essenciais: a necessidade de vincular o financiamento climático ao desenvolvimento, a importância de combater os mitos fiscais e da dívida, e a oportunidade de repensar o próprio modelo econômico.
Em primeiro lugar, o financiamento climático precisa estar ligado a uma estratégia clara de desenvolvimento. Com frequência, nos debates e negociações climáticas, o desenvolvimento é tratado como algo secundário — ou até indesejável. Essa visão não é realista nem justa, especialmente em países em que reduzir a pobreza, gerar empregos e garantir estabilidade social continuam sendo prioridades urgentes. Ignorar as necessidades de desenvolvimento em nome de um suposto purismo climático não trouxe bons resultados; ao contrário, aprofundou desigualdades e reduziu o apoio político à ação climática. Uma transição justa e sustentável depende do desenvolvimento — um processo de transformação estrutural — que redefina padrões de produção, consumo, uso da energia, a distribuição de renda e riqueza etc.
Por isso, os fluxos de financiamento climático são mais eficazes quando apoiam prioridades nacionais de diversificação, geração de empregos e inclusão social, e não quando são orientados por objetivos estritamente ambientais. Os investimentos climáticos devem ajudar os países a fortalecer suas indústrias de forma sustentável, ampliar o acesso a energia e a água limpas e aumentar a resiliência das comunidades mais vulneráveis. Quando o financiamento climático está inserido em um planejamento de desenvolvimento coerente, ele deixa de ser um conjunto de ações pontuais e passa a ser uma alavanca de transformação estrutural.
A ideia de que os países em desenvolvimento estão apenas em estágios anteriores de um caminho único rumo à prosperidade é equivocada. Como ressaltava o economista Celso Furtado, o subdesenvolvimento não é uma etapa, mas uma condição estrutural — mantida por assimetrias globais de poder, heranças coloniais e relações comerciais desiguais. Hoje, essas assimetrias se reproduzem na chamada “modernização verde”. Muitos países do Sul Global recebem financiamento climático para projetos baseados em tecnologias e patentes importadas, o que reforça antigas hierarquias em novas cadeias produtivas. Essa dinâmica é particularmente visível na corrida pelos minerais da transição: enquanto os países em desenvolvimento fornecem as matérias-primas essenciais para a descarbonização, a geração de valor continua concentrada em outros lugares.
A convergência entre proteção ambiental e transformação industrial é possível quando a proteção dos ecossistemas, as políticas urbanas e industriais inclusivas e a justiça social são tratadas como dimensões interdependentes. Além disso, a transição só terá êxito se incluir trabalhadores, agricultores e populações marginalizadas, conectando a restauração ecológica à geração de empregos dignos e valor local.
O desafio atual é historicamente único. As nações industrializadas cresceram explorando a natureza e os recursos naturais; já os países em desenvolvimento são pressionados a descarbonizar suas economias enquanto ainda lutam para garantir infraestrutura, saúde e educação — muitas vezes sem o financiamento nem as tecnologias verdes necessárias. Superar essa lacuna exige uma visão de ação climática centrada no desenvolvimento, que redefina o financiamento climático como instrumento de mudança estrutural, e não apenas de contabilidade de emissões.
Em segundo lugar, muitos dos principais entraves ao financiamento climático não são econômicos — são políticos. As finanças públicas nunca são neutras: refletem decisões sobre quem paga, quem se beneficia e de quem é o futuro priorizado. Ainda assim, enquanto governantes alegam que “não há espaço fiscal”, somas imensas continuam sendo destinadas a subsídios aos combustíveis fósseis, ao pagamento de juros da dívida e aos gastos militares. Sistemas tributários regressivos permitem que a riqueza se concentre no topo e limitam a capacidade dos Estados de financiar bens públicos. O problema, portanto, não é de escassez, mas de alocação: desigualdade na distribuição e uso ineficiente dos recursos.
O financiamento climático precisa ser enquadrado como uma questão de vontade política. Por que não taxar os ultrarricos para financiar infraestrutura verde? Por que não priorizar investimentos climáticos em vez de abrir mão de receitas e de aceitar juros exorbitantes? As restrições fiscais muitas vezes são construções políticas, desenhadas para proteger elites e manter a ilusão de que a austeridade é inevitável. Isso é especialmente preocupante em países que, após décadas de ortodoxia fiscal, viram o Estado perder sua capacidade de investir em uma transição justa.
Em muitos países em desenvolvimento, o maior obstáculo à ação climática é a dívida externa. Essas nações estão se endividando para enfrentar uma crise que não causaram — e gastando mais com o serviço da dívida do que com resiliência climática ou saúde. A justiça climática deve, portanto, incluir justiça da dívida: reestruturar passivos insustentáveis, reformar os mecanismos multilaterais de crédito e garantir que novos fluxos de financiamento não reproduzam a dependência por meio de instrumentos privados caros. Sem essas mudanças, o financiamento climático continuará operando dentro de uma arquitetura global altamente regressiva, que drena em vez de fortalecer o Sul.
Por fim, a crise climática não é apenas um desafio ambiental ou fiscal — é um convite a repensar a economia em si. O neoliberalismo, com sua fé em mercados desregulados e privatização, mostrou-se incompatível com os limites do planeta. Ferramentas de mercado, como comércio de carbono ou financiamento misto, podem ter seu papel, mas não bastam para garantir uma transição justa e sustentável. Apostar que o capital privado resolverá a crise climática é uma miragem perigosa. O investimento e a liderança públicos precisam definir o rumo, enquanto o setor privado cumpre um papel complementar — e não dominante.
Um novo paradigma econômico deve redefinir o que entendemos por prosperidade, valor e crescimento. A economia precisa ser compreendida como um sistema que sustenta a vida — não apenas que gera lucro. Resgatar o papel do Estado como investidor, planejador e garantidor de equidade não é um retrocesso, mas uma condição para um futuro viável.
Essa transformação exige também reformar as regras globais que moldam o financiamento climático. Os sistemas financeiros e comerciais internacionais hoje limitam o espaço de política dos países de baixa e média renda, penalizam políticas industriais verdes e perpetuam ciclos de endividamento que sufocam o investimento transformador. Reformar essas estruturas — incluindo regras de comércio e propriedade intelectual que restringem a transferência de tecnologia e o conteúdo local — é essencial para alinhar metas climáticas e prioridades de desenvolvimento.
Hoje, o negacionismo climático muitas vezes se disfarça de negacionismo econômico: a recusa em aceitar que uma ação climática verdadeira exige repensar, na raiz, os modos de produção, consumo e distribuição. A transição que temos pela frente pede imaginação e coragem — novas instituições, cooperação renovada e um contrato social que una pessoas, planeta e bem-estar.
O caminho até a COP30 já trouxe uma mudança simbólica. Ao propor o encontro como um grande mutirão global — um esforço coletivo baseado na solidariedade e na cooperação, e não na competição e no lucro —, o Brasil sinaliza uma nova forma de enfrentar problemas globais. Esse espírito de colaboração, solidariedade e corresponsabilidade deve orientar não apenas as negociações climáticas, mas também a reconstrução da própria governança econômica mundial.
No fim das contas, o financiamento climático precisa ir além da contabilidade de dólares e toneladas de carbono. Sob a perspectiva do Sul Global, ele deve se tornar uma alavanca de transformação estrutural: um instrumento para construir um modelo de desenvolvimento soberano, inclusivo e ecologicamente sólido. Ignorar o papel do desenvolvimento no financiamento climático é pintar de verde antigas hierarquias — e desperdiçar uma oportunidade histórica de construir um mundo mais justo e sustentável.
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