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O direito não deve servir à política

A politização da Justiça caracteriza o avesso do constitucionalismo

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O escritor e jornalista Nélson Rodrigues disse que toda a unanimidade é burra e que quem pensa com a unanimidade não precisa pensar. Ele se referia à saudável alteridade de pensamento, não ao profundo dissenso de nossos dias, um dissenso devastador, que alerta para o esmaecimento do tecido que nos une como sociedade. Mas até para essa discórdia generalizada há exceção. O sistema de Justiça brasileiro tem contribuído para a união popular, porque é motivo de insatisfação a torto e a direito.

É disseminada, em que pesem os esforços de nossa laboriosa e bem-intencionada comunidade jurídica, uma percepção reducionista do sistema de Justiça em funcionamento no País, que lhe atribui uma condição instrumental estéril, desprovida de uma afetação própria. O sistema de Justiça, como acreditam muitos, é joguete nas mãos de poderosos, para afagar amigos e alvejar desafetos. A sensação é que o direito se transmudou em lawfare, uma modalidade de belicismo, em meio a guerras de gangues. Mas não só isso, o que se percebe é que o direito se exprime, menoscabado, como um elemento do jogo político.

A politização da Justiça caracteriza o avesso do constitucionalismo, marcado pelo esforço à quebra de qualquer hierarquia entre política e direito. Um esforço para, desde o aparecimento das Constituições modernas, estabelecer relações ortogonais e não tributárias entre direito e política. Embora direito e política sejam realidades indissociáveis, o direito não serve, não deve servir à política, tampouco será direito se, ainda que disfarçado de direito, fizer política. E como se tem feito política no Brasil, sob as vestes do direito.

Sim. O direito faz política quando é usado para increpar oponentes políticos em processos penais para fins evidentemente eleitorais. Faz política quando discrimina negros em favor de brancos, não apenas para permitir que sejam livremente massacrados pelas forças de Estado, todos os dias, nos bairros pobres deste País, mas, sobretudo, para que remanesçam pobres, ao erigir obstáculos intransponíveis entre eles e uma educação que os capacite a ser o que quiserem ser.

Faz política quando encarcera negros e pobres e absolve brancos e ricos, sob uma impunidade seletiva, que aprofunda a chaga da violência, o senso generalizado de injustiça e a descoordenação das forças sociais.

Faz política quando admite e arbitra embates mesquinhos entre as corporações que engolfaram os grandes debates em busca de favores e de protagonismo.

Faz política quando estabiliza relações econômicas desiguais e profundamente desonestas nos mercados, a exemplo da prática de juros, que escraviza um povo sem renda, sem trabalho e sem futuro.

Faz política quando se esquece de afirmar direitos fundamentais sociais e contribui para demonizar movimentos sociais.

Faz política quando pretere a produção em favor da financeirização da economia e, em qualquer hipótese, quando premia renitentemente o poder econômico, para o conservar e salvar de todos os males e adversidades.

Tudo isso tem incensado lunáticos de todo o gênero, tanto mais quando orquestrados por um governo de lunáticos, a atentar contra algumas das instituições de nosso sistema de Justiça, sacralizadas por sua importância central no Estado Democrático de Direito. Tudo isso é o que faz com que uma crescente parte de nosso povo veja na defesa dessas instituições a vontade de defender privilégios.

Ao contrário do que muitos imaginam, um sistema de Justiça democrático não é aquele que busca assimilar os reclamos de maiorias ocasionais. Sua função é exatamente oposta: garantir os direitos de maneira contramajoritária, “contra tudo e contra todos”. A tão propalada “voz das ruas” deve ecoar no Parlamento, não nos tribunais, sob pena de perecerem o direito e a política.

Não há atalhos na democracia. As canetas unilaterais e com tintas definitivas dos juízes não são as depositárias dos sonhos das brasileiras e dos brasileiros. As nossas utopias devem estar nas mãos dos políticos, aos quais compete, nos termos de nossa Constituição, dar voz à soberania popular.

O momento, de grave perigo, requer sobriedade. É necessário, por ora, defender o que construímos, a despeito dos graves defeitos que saltam aos olhos. Passada a tempestade, será preciso repensar nosso sistema de justiça.

*Em parceria com o advogado Rafael Valim

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