Artigo

O bolsonarismo em conflito aberto pelo controle do Brasil

Os processos de impeachment de Wilson Witzel e Carlos Moisés são verdadeiros campos de batalha em todo o País

Foto: Fernando Frazão/ABR
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A Operação Lava Jato criou um padrão particular de atuação, alheio às regras que caracterizam um Estado Democrático de Direito, que resultou num modus operandi muito mais próximo da perseguição aos críticos e desafetos da força-tarefa, transformados em inimigos, do que da missão institucional de conter as arbitrariedades no exercício do poder. 

Tal conclusão faz parte de estudo publicado no Journal of Law and Society e conduzido por Fábio de Sá e Silva, professor de estudos brasileiros da University of Oklahoma, nos Estados Unidos. Ao desenvolver sua pesquisa, ele realizou, codificou e classificou 194 entrevistas concedidas por integrantes da Lava Jato e também pelo ex-juiz Sérgio Moro, entre janeiro de 2014 e dezembro de 2018. Em recente entrevista à Deutsche Welle, o professor destaca que a Lava Jato criou uma “gramática política” que pautou suas atividades investigativas e orientou o comportamento de seus integrantes, a ponto de constituir um grupo de pressão sobre mudanças nas leis brasileiras em benefício da própria operação. 

Oriundo do Ministério Público, o jurista Lênio Streck igualmente destaca em textos recentes esse descolamento de parte do MP de sua missão constitucional para atuar usando a lei e os instrumentos à disposição da instituição em defesa de interesses de grupo. Ou seja, abandona-se o conceito de “funcionário público”, aquele que exerce funções de interesse da coletividade, para a implementação da prática de usar as prerrogativas da função pública na defesa de causas e teses de interesse do indivíduo que a exerce. Usurpação do público pelo privado, corrupção no sentido mais profundo da palavra.

As conclusões do estudo de Fábio Sá e Silva confluem para os fenômenos do que tenho chamado de “autoritarismo líquido”. Quer dizer, em vez das conhecidas formas de autoritarismo, cujos expoentes históricos mais contundentes estão nas ditaduras militares, no bonapartismo e no nazi-fascismo, as formas atuais de autoritarismo líquido não se manifestam na constituição de um governo de exceção evidente, mas na adoção de medidas que contenham aparência democrática e legal para disfarçar os conteúdos políticos e tirânicos destinados a perseguir inimigos que trazem em seu interior. 

No Brasil, bem como em muitos países da América Latina, é o sistema de Justiça a fonte primária de onde emanam tais distorções, pois a disseminação dos conteúdos autoritários revestidos de normalidade democrática e constitucional nasce, justamente, das decisões e dos atos das instituições que compõem o sistema de Justiça. 

E a Lava Jato cumpriu o papel de destaque nesse processo de deterioração da normalidade democrática. A pesquisa da Universidade de Oklahoma também aponta essa consequência trágica da forma de atuação da Lava Jato: o enfraquecimento da democracia e do Estado de Direito e o favorecimento à ascensão de lideranças populistas, alinhadas ao ideário da extrema-direita, cujo exemplo máximo é a eleição do presidente Jair Bolsonaro, mas também expressa em eleições de muitos governadores dos estados.  

Nesse sentido, a Lava Jato asfaltou o caminho que levou à vitória de Bolsonaro em 2018. Mais que isso, alimentou no cenário político e jurídico a formação do bolsonarismo. Sim, Bolsonaro e bolsonarismo são coisas diferentes. O presidente da República é a personificação na mais alta instância executiva do País do fenômeno do bolsonarismo. A Lava Jato, bem como parte significativa do sistema de Justiça e da mídia tradicional, formada por grandes grupos com interesses econômicos volumosos, colaborou para a formação e o crescimento do bolsonarismo. E adotou, em 2018, Jair Bolsonaro como representante para a ocasião. 

A marcha histórica do bolsonarismo, começada nos idos da década de 1990, culminou com a eleição de Bolsonaro em 2018 e na formação de um bolsonarismo jurídico. A Lava Jato é peça-chave desse quebra-cabeça. A operação emprestou sua credibilidade, galgada a golpes nas leis e na Constituição e com veementes aplausos midiáticos interessados na venda do produto “combate à corrupção”, para destruir inimigos políticos e eleger Bolsonaro. 

Contudo, neste momento, o bloco de poder formado para as eleições de 2018 apresenta fortes sinais de fissura. Há uma crise política instaurada entre as frações bolsonaristas. De um lado, o que chamo de “bolsonarismo político”, que reúne o presidente da República, seu entourage, o chamado “gabinete do ódio”, parte das Forças Armadas e das polícias militares e grupos de milícias. De outro, o bolsonarismo jurídico-midiático, ramificado nas diversas instituições do sistema de Justiça, com apoio substancial da Rede Globo, entusiasmo de parte da sociedade civil e que tem na Lava Jato, em Sérgio Moro e Wilson Witzel seus principais ícones. 

Os recentes processos de impeachment de que são alvo os governadores do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e de Santa Catarina, Carlos Moisés, fazem parte do embate atual entre as duas frações do bolsonarismo. Não se discute aqui o mérito, pois corrupção deve sempre ser objeto de combate e investigação. Mas os métodos empregados no sistema de Justiça cada dia mais reforçam o fenômeno da bolsonarização, a expressão brasileira do autoritarismo líquido. 

Os métodos de investigação, as regras de apuração, a orientação das leis e os princípios constitucionais têm sido enfraquecidos numa escalada cuja direção é o esvaziamento dos valores democráticos e a formação de um estado de perseguição do inimigo. Precisamos derrotar o bolsonarismo, pois conhecemos o fim trágico desse filme.

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