Artigo
Novo pacto nacional
A normalidade democrática está conectada umbilicalmente a uma revolução social
O Brasil vive um daqueles momentos decisivos em que uma nação precisa escolher se avança na construção de sua democracia ou se deixa arrastar-se pela tempestade reacionária que assola boa parte do mundo. Perguntar se voltaremos à normalidade democrática é, no fundo, questionar se seremos capazes de reconstruir um pacto nacional à altura dos desafios do nosso tempo, um pacto democrático que supõe aceitar as regras do jogo, respeitar as instituições republicanas, defender a soberania nacional e enfrentar, de forma consequente, a desigualdade estrutural que corrói o País há séculos.
A verdade é que a democracia brasileira não será restaurada plenamente sem uma reconfiguração profunda do Estado e da sociedade. Não basta derrotar eleitoralmente a extrema-direita. É preciso compreender que o fascismo contemporâneo, agora globalizado, financista e impulsionado por plataformas digitais, é uma força histórica reacionária que se alimenta da perda de horizonte das populações submetidas às crises sucessivas do neoliberalismo. O colapso da promessa de autorregulação dos mercados, a financeirização extrema e a concentração de riqueza sepultaram a ilusão de que a democracia liberal sobreviveria ilesa ao avanço de oligarquias capazes de decidir o destino de países e povos.
Nesse contexto, alguns desafios se impõem ao Brasil. E aqui as consequências são visíveis, passando pelo crescimento acelerado da desigualdade após a pandemia de Covid–19, os juros reais entre os mais altos do mundo, o enfraquecimento da capacidade de investimento do Estado e a tentativa sistemática de setores financeiros e do agronegócio de capturar a política econômica. A velha parcela oligárquica nunca se conformou com a ascensão social dos mais pobres nos governos do PT e tenta, mais uma vez, reescrever as regras do jogo para proteger seus privilégios.
Mas o Brasil mudou. As ruas voltaram a falar, com as manifestações de setembro, em defesa da democracia, da justiça tributária e contra a anistia aos golpistas, revelando algo maior do que o isolamento crescente do bolsonarismo: mostraram a emergência de um novo espírito público, especialmente entre jovens que rejeitam a desigualdade naturalizada, a concentração obscena de renda e o pacto histórico que permitiu às elites brasileiras renunciar ao País sem renunciar aos benefícios de explorá-lo. Essas manifestações não foram episódicas.
Precisamos de uma reconfiguração profunda do Estado e da sociedade
O desafio agora é transformar essa energia cívica em força organizada, capaz de sustentar um novo pacto democrático e um programa de reformas estruturais. Não haverá normalidade democrática se continuarmos a conviver com um Congresso capturado por interesses corporativos e pela lógica das emendas impositivas, que inverteram o sentido da representação popular. É preciso restituir ao País a capacidade de planejar, investir e coordenar estratégias de desenvolvimento.
A esse cenário interno soma-se a profunda transformação da geopolítica mundial. A hegemonia norte-americana entrou em declínio visível, e a ascensão dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul –, do Sul Global como um todo, da Turquia, Irã e Indonésia redefine o equilíbrio de forças. É justamente nesse momento que os EUA reagem com uma política externa que busca conter pela força a inevitável multipolaridade. O resultado é a instabilidade internacional crescente, com guerras regionais, tensões militares e tentativas de pressão sobre países soberanos, o Brasil incluído. A ofensiva contra a regulação das big techs, a tentativa frustrada de exercer pressão pela anistia a Jair Bolsonaro e demais golpistas, e as teses fantasiosas de que vivemos sob uma ditadura judicial fazem parte dessa disputa global na qual os interesses oligárquicos se alinham à extrema-direita internacional.
Um novo pacto democrático no Brasil precisa partir da consciência de que democracia e soberania são inseparáveis. Não há democracia possível em um país submetido à lógica do rentismo, da dependência tecnológica e da vulnerabilidade institucional. Do mesmo modo, não há soberania possível num país dividido por desigualdades extremas e governado por elites que resistem a qualquer política distributiva.
Por isso, a pergunta inicial – podemos voltar à normalidade democrática? – só pode ser respondida afirmativamente se aceitarmos que essa normalidade não será a volta ao passado, mas a construção de algo novo. Exige reformas profundas, entre elas a tributária, a financeira, a política e a social. Exige enfrentar o poder dos super-ricos, taxar grandes fortunas, regulamentar plataformas digitais, reconstruir o papel do Estado indutor, investir em educação técnica e científica, combater o crime organizado em escala nacional e reorganizar o sistema político para que represente, de fato, a sociedade brasileira.
O rentismo, a vulnerabilidade institucional e a dependência tecnológica continuam a ser entraves ao desenvolvimento – Imagem: Leonardo Sá/Agência Senado e Lula Marques/Agência Brasil
Esse novo pacto supõe também um compromisso ativo das classes trabalhadoras, da juventude, dos trabalhadores de plataformas, das mulheres, dos negros e dos micro e pequenos empreendedores, de parcela do empresariado, enfim, de setores que não apenas sofrem com a desigualdade, mas que podem tornar-se protagonistas de um ciclo de reformas democráticas. Supõe, igualmente, uma nova relação com a classe média, tão vulnerável à manipulação da extrema-direita, mas que tem interesse direto na estabilidade, na educação pública, na segurança cidadã e na redução dos custos da vida.
O PT, a esquerda e as forças progressistas têm a responsabilidade histórica de liderar esse processo. O presidente Lula, por sua vez, já mostrou em diversos momentos que tem capacidade, liderança e experiência na superação de grandes impasses e na reorientação de seu governo. Recorde-se que, entre 2005 e 2006, seu primeiro governo enfrentou uma crise de proporções inéditas, precisando lidar com os efeitos do que se convencionou chamar de crise do mensalão. Também soube enfrentar a profunda crise financeira global de 2008 e 2009, tendo o seu segundo governo reorientado a política econômica, lançado o PAC e se recusado a adotar a política de austeridade proposta, como sempre, pelos setores da direita, da mídia e do mercado financeiro. Com audácia, superou a crise e teve um segundo mandato forte e com grandes resultados na economia e na popularidade. Por fim, em 2022, conseguiu liderar a articulação da frente ampla pela democracia, com seu terceiro mandato freando as aventuras golpistas do bolsonarismo antes e durante o 8 de Janeiro.
A frente ampla pela democracia converte-se agora em frente ampla pela democracia e pela soberania, sob liderança do presidente. Não como vanguarda iluminada, mas como expressão de uma maioria social disposta a defender a democracia contra seus inimigos internos e externos. A extrema-direita brasileira, que já governou o País e tenta voltar ao poder em 2026, não esconde seu projeto de destruição institucional. A regressão social é o núcleo do programa da direita e da extrema-direita e inclui a privatização de estatais e bancos públicos, a desvinculação do salário mínimo da Previdência, a privatização da seguridade social, o fim dos pisos de educação e saúde. Basta ver as políticas implementadas nos estados governados por eles. Essa direita conta com base social, com governadores, com prefeitos, com poder econômico e com apoio internacional. Combatê-la exige mobilização permanente e organização política cotidiana, uma exigência que se iniciou nas eleições municipais de 2024 e culmina no desafio estratégico de ampliar nossa bancada no Congresso para sustentar as reformas de que o Brasil precisa.
Essa é a razão para a minha insistência: a normalidade democrática só virá com uma revolução social, no sentido histórico e profundo do termo. Revolução social não é ruptura violenta, é reconstrução institucional, redistribuição de poder, democratização da riqueza, fortalecimento do Estado e criação de um novo consenso nacional em torno do desenvolvimento, da justiça social e da soberania. O Brasil já demonstrou ter força para isso. Falta transformar essa força em direção histórica, em projeto coletivo, em pacto nacional efetivo.
Democracia e soberania são inseparáveis
Nunca será demais repetir que o Brasil é uma potência per si, pelo seu território, por suas riquezas naturais, pelo tamanho da população e potencial do mercado interno e da sua economia. Está entre os cinco países que têm mais de 2 trilhões de dólares de PIB, mais de 200 milhões de habitantes e mais de 2 milhões de quilômetros quadrados, podendo, em dez ou 20 anos, alcançar o desenvolvimento, bastando resolver problemas internos que o impedem de uma revolução social e tecnológica: a concentração de renda e riqueza, a estrutura tributária, o rentismo que se apropria da renda nacional e mantém os juros altos que inviabilizam o crédito e o investimento.
Trata-se de uma equação política e social. E essa equação se resolve com um governo que coloque o Estado e suas instituições a serviço desses objetivos e mobilize as classes populares progressistas para sustentar um programa reformista que não se concretizará em um único mandato, e sim num período histórico. Exige um partido político à altura desse desafio e lideranças com convicção e vontade política de se renovar e liderar essa luta política, organizando as classes populares para ser a força principal dessa coalizão.
A escolha está lançada. Ou reconstruímos um país soberano, democrático e justo, ou assistiremos à corrosão lenta e profunda de nossa República. Sempre que posso enfatizo que uma era de grandes incertezas econômicas e mudanças significativas no cenário geopolítico internacional, como a que vivemos hoje no mundo, exige de uma nação como o Brasil capacidade de controlar o próprio destino, a fim de moldar o seu futuro. Esse é, talvez, o grande desafio do nosso tempo, uma questão que deve dirigir tanto a nossa política externa quanto um inadiável projeto nacional de desenvolvimento.
Só assim voltaremos, enfim, à normalidade democrática. Mas não a normalidade de ontem, e sim a normalidade que ainda precisamos construir. •
Publicado na edição n° 1394 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Novo pacto nacional’
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