Não, Biden e Trump não são a mesma coisa

'É absolutamente surpreendente a facilidade com que alguns se apressam a transformar uma vitória em derrota', escreve José Sócrates

O democrata Joe Biden e o republicano Donald Trump. Fotos: Angela Weiss/Saul Loeb/AFP

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De volta a Joe Biden. Agora, para argumentar com quem no Brasil acha que tudo vai ficar igual e nada mudará nos Estados Unidos. É absolutamente surpreendente a facilidade com que alguns se apressam a transformar uma vitória em derrota.

 

 

 

Não, Biden e Trump não são a mesma coisa. A vitória do primeiro marcou, desde logo, a superação da experiência política sobre o aventureirismo. A vitória de quem tem um passado. Com erros e com insucessos, como é próprio de quem age na política, terreno de incerteza e contingência. Mas com a maturidade própria de quem aprendeu com eles. Se há virtude na sua candidatura é justamente a de não se apresentar como virtuoso ou moralista. No fundo, e para ser conciso, Biden significa a vitória da “velha política” do diálogo, do compromisso e da reforma progressista sobre a chamada “nova política”, que nada mais é do que incompetência, radicalismo e hipocrisia moralista. Não, eles não são a mesma coisa.

Depois, a eleição de Biden significa também o fim da internacional populista no seu significado político preciso. Sua eleição representa o declínio dos que se apresentam como representantes de povo autêntico e originário contra os outros, o “não povo”, dominados por forças estranhas e exógenas que conspiram para enfraquecer a força cultural do país profundo – sejam eles os comunistas, os homossexuais, os emigrantes ou qualquer outra minoria que ameace a tradição popular. A batalha nos Estados Unidos deu-se exatamente nesse ponto. A escolha foi entre duas ideias nacionais – uma nação que se apresenta como salvadora do Ocidente anglo-saxão ou uma nação que pretende constituir-se como polo irradiante de uma ordem internacional baseada na paz, nos direitos individuais e na dignidade da pessoa humana. O Brasil sabe do que falo. Não é preciso ir mais além do que ler o alucinado artigo do chanceler brasileiro apresentando Trump e seu discurso em Varsóvia como o último e corajoso testemunho da defesa da civilização ocidental: “Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana”. Eis ao que conduzem os êxtases megalômanos dos personagens que sonham com Napoleão e Hegel e têm visões recheadas de personagens a cavalo, cujo poder se “concentra num ponto e se estende sobre o mundo e reina sobre ele”. Enfim, acabou.


Julgo, no entanto, que a maior injustiça e falha de análise por parte daqueles que acham que nada mudará com Biden diz respeito à política externa norte-americana. Não, não sou ingênuo, e sei bem que os Estados Unidos têm um poder militar próprio de um império e que agirão em função dos seus interesses. É isso que espero e, para dizê-lo com clareza, é também isso que desejo – que os Estados Unidos se comportem de forma estável em defesa dos seus interesses e abandonem o capricho pessoal, a balbúrdia estratégica e a linguagem belicista como método de definição da sua política externa. No fundo, que a sua diplomacia seja previsível e que “não ande pelo mundo à procura de monstros para destruir”, nas famosas palavras de Quincy Adams. Ordem e racionalidade estratégica, eis o que tem faltado aos Estados Unidos.

 

Espera-se uma mudança importante nas relações deWashington com a América Latina

Julgo também poder dizer, com elevado grau de certeza, que as áreas de maior tensão política se verificarão no continente asiático e na relação com a China. É aí, a Oriente e não a Ocidente, que a nova estabilidade e novo equilíbrio, que resultam essencialmente da vitória chinesa na batalha da globalização econômica, se construirão, acomodando a nova potência. Nesse sentido, não vejo razões para que a política norte-americana não se altere na América Latina. É do interesse dos EUA terem mais amigos e menos adversários. É do interesse norte-americano que a sua política externa abandone o preconceito ideológico. É do interesse norte-americano que a sua diplomacia seja ditada por interesses estratégicos, e não pela ameaça ou pela intimidação aos países nos quais as escolhas governamentais, feitas pelos respectivos povos, não foram do seu agrado.

É altura de amadurecer. A consequência da atual política de Washington – primária, autoritária e anacrônica (como se a ameaça comunista ainda existisse) – tem sido a de atirar esses países para a órbita dos seus concorrentes econômicos, sejam eles a China ou a Rússia. Venezuela, Cuba, Bolívia e Chile são bons exemplos dessa política ditada pelo alinhamento ideológico e que nada tem a ver com a credibilidade norte-americana nos assuntos mundiais. A desgraça estratégica da invasão do Iraque e a administração Trump trouxeram um dano calamitoso no prestígio internacional dos Estados Unidos. O tempo agora é de reconstrução. O mundo precisa doravante­ dos EUA mais concentrados na influência do que na força. Nas palavras do próprio Biden, o poder do exemplo, não o exemplo do poder.

Finalmente, e sem falsas expectativas, julgo que a mudança norte-americana relativamente à Amazônia é para ser levada a sério. A partir de agora, a defesa do ambiente, a conservação da natureza e o combate às alterações climáticas passam a fazer parte das políticas de segurança mundial. Tudo isso são boas notícias para o Brasil e em especial para o campo progressista. Não, não ficou tudo na mesma. O ex-presidente Lula acertou em cheio – o mundo respirou aliviado com a vitória de Biden.

 

*Ex-primeiro-ministro de Portugal

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